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Dois judeus se encontram num vagão de trem em uma estação na Galícia. ‘Para onde vai?’, perguntou um deles. ‘Para Cracóvia’, respondeu o outro. ‘Como você é mentiroso!’, não se conteve o primeiro. ‘Você só diz que vai à Cracóvia para que eu acredite que vai a Lemberg. Mas sei que, realmente, vai à Cracóvia. Por que você mente para mim?
Sigmund Freud
Deus não joga dados
Albert Einstein
Deus pode ser sutil, mas não é desonesto
Albert Einstein
Nos mais diversos círculos de investigadores da psicanálise se tornou comum dizer que Jacques Lacan se viu inspirado pelo modelo da linguística estrutural, no começo dos anos cinquenta, ao ponto de querer usá-lo como ciência piloto na reconstrução do edifício teórico da psicanálise e como bússola em seu projeto pessoal de releitura da obra freudiana. No entanto, essa interpretação deixa de evidenciar que, oriundo dos países de língua inglesa e antes da efervescência em torno do paradigma linguístico, o paradigma informacional já havia lançado suas âncoras e atracado em terras francesas no final da década de quarenta.
Nosso interesse se concentra no artigo O seminário sobre A carta roubada escrito por Lacan não somente porque o texto abre o único livro publicado pelo autor, mas também em virtude do contexto de recepção e de discussão em torno do paradigma informacional em sua obra. Essa atmosfera intelectual forneceu os ingredientes que, além de servir com certos conceitos e noções que foram apropriados em sua leitura da psicanálise, despertou no autor o interesse de apresentar sua própria interpretação sobre o conto do escritor norte-americano. “Vem socorrer-nos um pequeno texto de Edgar Poe, do qual dei-me conta de que os cibernéticos faziam algum caso. Este texto está em A carta roubada, novela absolutamente sensacional, que poder-se-ia até considerar como fundamental para um psicanalista”1. O aspecto não mencionado por Lacan é que os chamados cibernéticos eram, na verdade, matemáticos que estavam vinculados ao Cercle d’études cybernétiques (CECyb), cuja atividade ocorreu na França entre os anos de 1951 e 1953. Entre os membros do CECyb mais próximos de Lacan estavam Georges-Théodule Guilbaud e Jacques Riguet. Embora o diálogo do psicanalista francês com os autores do paradigma informacional tenha sido negligenciado pela maioria de seus leitores e comentadores, sobretudo os próprios psicanalistas, nas últimas décadas o assuntou ganhou destaque entre historiadores e teóricos das mídias como Bernard Geoghegan, Friedrich Kittler, John Johnston, Lydia Liu e Ronan Le Roux.
Composição do texto
Lacan apresentou pela primeira vez o conteúdo do que futuramente se tornou o artigo O seminário sobre A carta roubada nas lições de 23 de março e 26 de abril de 1955, porém, sua versão escrita surgiu apenas em 1956, na revista La psychanalyse. No ano de 1966, o texto é reeditado e publicado novamente na abertura dos Escritos. Depois de alguns anos da publicação do livro, Lacan comenta que o artigo foi posto no começo da coletânea de seus textos por representar o melhor modo de introduzir o leitor no espírito da obra2. Dessa forma, podemos considerar que o artigo possui uma posição estratégica àqueles que farão sua entrada nos Escritos.
Existe outro aspecto bastante interessante acerca da composição do artigo. A versão original publicada em 1956 se divide basicamente em duas seções. Na primeira, o leitor é imediatamente surpreendido com um estranho sistema formal composto de símbolos, números e letras, no qual o autor diz conseguir exprimir melhor o que Freud procurou sustentar com o conceito de compulsão à repetição. Na segunda, Lacan apresenta uma análise sobre o conto A carta roubada escrito por Edgar Allan Poe. Essas duas seções do artigo original recebem na versão reeditada de 1966 e publicada nos Escritos, os respectivos nomes de “introdução” e “o seminário sobre ‘A carta roubada’” e suas ordens estão invertidas.
Não só o conteúdo do artigo original foi reeditado e aumentou de tamanho, como também os textos que foram escritos em 1956 e depois em 1966 se revesam na composição final do artigo. Nesse sentido, o próprio artigo se assemelha com um criptograma organizado de maneira intricada com o objetivo de mais esconder do que revelar e mais confundir do que esclarecer sobre o conteúdo de sua mensagem.
A despeito da ordem de exposição da versão final do artigo, o autor parece sugerir que o caminho adequado ao leitor não começa no deleite estético da análise do conto, mas no exercício bem menos glamoroso de formalização de leis sintáticas na seção que recebe o título de “introdução”. Contudo, antes de avançarmos no conteúdo presente nessa seção do artigo, precisamos primeiro estabelecer minimamente o quadro de pensamentos que estavam circulavam naquele período histórico e que suscitaram algumas de suas elaborações. Esse quadro se constituiu com o encontro ocorrido, após o término da Segunda Guerra Mundial, entre os matemáticos que lidavam com os problemas relativos à informação e os pesquisadores que desenvolviam suas pesquisas em torno das questões da linguagem.
O nascimento da ciência da informação
Sem pretender ir até suas origens, podemos dizer que o paradigma informacional adquiriu popularidade graças ao famoso ensaio As we may think, escrito, em 1945, pelo americano e engenheiro Vannevar Bush3. Em seu texto, Bush se mostrava preocupado com o enorme volume de dados que são produzidos na sociedade moderna e com o tempo escasso para serem analisados e utilizados de maneira eficaz por qualquer ser humano. Inspirado nos recentes projetos dos computadores modernos, o autor imaginava uma máquina capaz de ser alimentada com dados, tivesse memória suficiente para armazená-los, processasse toda informação e pudesse associar cada um dos dados registrados de maneira ágil através de simples operações lógicas. Bush batizou o engenho mental de MEMEX. Em 1948, o matemático Norbert Wiener publicou o livro Cybernetics para tentar buscar paralelos e explicar como os animais e as máquinas armazenam, processam e trocam informação com o meio e com seu próprio interior4. No ano seguinte, em 1949, Claude Shannon e Warren Weaver publicaram juntos o artigo A Mathematical Theory of Communication com o objetivo de fornecer técnicas para reduzir os custos e melhorar o sistema de telecomunicação da época5. No artigo produzido pelos engenheiros do Bell Labs e cuja base filosófica se assemelha com o conteúdo exposto no livro de Wiener, o interesse central consiste em apresentar como duas fontes de informação se comunicam e como uma mensagem que sofreu pertubações pode ser resgatada com o auxílio de ferramentas estatísticas.
O departamento ultramarino da École Libre des Hautes Études(ELHE)foi instalado na cidade de Nova York, no ano de 1942, com o propósito de servir como residência e difusão da cultura acadêmica francesa na Segunda Guerra Mundial. Na época o departamento era financiado pela Fundação Rockefeller cuja filosofia se orientava em promover uma fraternidade mundial entre os cientistas que desenvolviam pesquisas relacionadas com o tema da comunicação. Entre os pesquisadores francófonos que estavam exilados no país e lecionavam no departamento, estavam o linguista Roman Jakobson e o etnólogo Claude Lévi-Strauss, que desde então produziram um forte intercâmbio de ideias.
Jakobson começou o ano letivo na ELHE, ainda em 1942, com o curso publicado posteriormente com o nome de Seis lições sobre o som e o sentido e, em seguida, ofertou outro curso dedicado à doutrina linguística de Ferdinand de Saussure. Em suas aulas, o russo ressaltava que o excesso de empirismo na fonologia fez com que os trabalhos no campo ou ficassem enviáveis, por causa da quantidade de dados para serem analisados, ou fossem uma simples descrição e classificação dos fenômenos acústicos e motores empregados na fala6. Para fornecer vigor científico aos estudos fonéticos e linguísticos, o autor indicava que o método utilizado deveria tomar os elementos mais simples da língua e considerar o tipo de relações que os une no interior de um sistema. Diferente de Saussure que considerou o fonema como o átomo da língua, Jakobson o considera como uma estrutura complexa formada por entidades abstratas chamadas de traços distintivos. Dessa forma, o autor defende que os fonemas podem ser decompostos em traços (características como vocálico, consonantal, grave, nasal, etc.), que, embora não carreguem nenhum sentido, o modo como se distribuem no tempo e se agrupam uns com os outros serve na comunicação para os interlocutores distinguirem sobre o sentido daquilo que ouvem.
Com o fim da Segunda Guerra e o avanço da Guerra Fria, o incentivo financeiro fornecido pela Fundação Rockefeller foi cada vez mais deslocado das pesquisas realizadas pelos cientistas sociais àquelas produzidas pelos engenheiros de telecomunicações. Nesse momento, Lévi-Strauss retorna para Paris com o objetivo de defender sua tese de doutorado e Jakobson permanece nos Estados Unidos para lecionar nas universidades de Columbia e Havard e colaborar com os engenheiros do MIT. Porém, o diálogo entre o etnólogo e o linguista prosseguiu apesar de estarem separados pelo Atlântico.
Na carta de 26 de janeiro de 1949, Jakobson anuncia que gostaria de enviar o recente livro de um admirável e inteligente matemático do MIT, assegurando que o amigo etnólogo adoraria em lê-lo. Na carta seguinte, Lévi-Strauss responde: “Não me envie o Cibernética, eu já o tenho (o livro foi publicado na França, embora em inglês) e li com entusiasmo. Você não pensa que os aparelhos que o autor descreve poderia calcular a priori todas as estruturas fonológicas possíveis, possibilitando identificar os idiomas perdidos ou mal conhecidos?”7. Por sua vez, na carta de 20 de janeiro de 1950, Jakobson comenta sobre sua colaboração com os engenheiros do MIT e anuncia que enviaria uma cópia do livroA Mathematical Theory of Communication escrito por Claude Shannon e Warren Weaver, depois conclui dizendo:
Uma invenção nova e cativante permite desenhar os espectrogramas de sons e depois reproduzi-los mecanicamente com sons perfeitamente reconhecíveis – pelo menos se o desenho for simplificado e suprimido de todos os componentes que, na terminologia dos engenheiros em acústica, aumentam o ‘ruído’ e não contém ‘informação’. Eu tenho levado mais em conta agora a quantidade e o tipo de informação (e, reciprocamente, de redundância) em minhas pesquisas sobre fonologia e semântica8.
A invenção cativante na qual Jakobson se refere recebeu o nome de VODER (abreviação de Voice Operating Demonstrator) e foi o primeiro sintetizador eletrônico capaz de reproduzir os componentes acústicos da fala humana. Em 27 de março de 1950, Lévi-Strauss responde:
Eu literalmente devorei o Mathematical Theory. Na verdade, sinto-me um pouco irritado com os termos ‘informação’ e ‘redundância’, que significam exatamente o contrário do que os autores indicam, mas o aspecto interessante do livro é precisamente porque fornece uma teoria do pensamento segundo o ponto de vista da máquina, a qual me parece pela primeira vez considerada como um objeto. Nessas condições, é normal que tudo esteja ao contrário, mas é bastante difícil de se acostumar. Em todo caso, pude colher ensinamentos e sugestões, sobretudo em relação à aplicação desses métodos ao estudo do pensamento mítico; se eu conseguisse encontrar aqui [Paris] um matemático compreensivo, acredito que poderia fazer um progresso muito surpreendente no estudo dos mitos9.
Nos próximos anos, Lévi-Strauss conseguiu se encontrar com os matemáticos Georges-Théodule Guilbaud, Jacques Riguet, Benoît Mandelbrot, Marcel-Paul Schützenberger que, além de André Weil ao qual conheceu ainda em Nova York e colaborou com um apêndice em sua tese de doutorado, eram vinculados ao Cercle d’études cybernétiques (CECyb) e com os quais pôde extrair lições mais ou menos frutíferas para suas pesquisas etnográficas.
Em 1952, Jakobson envia para Lévi-Strauss o manuscrito de um artigo no qual podemos observar já toda ferramenta analítica e conceitual presente no livro A Mathematical Theory of Communication de Claude Shannon e Warren Weaver, aplicada para fornecer uma descrição lógica da estrutura fonética da língua russa10. No artigo, o idioma russo é analisado pela presença (+) ou ausência (–) de 11 traços distintivos que juntos compõem os 42 fonemas que caracterizam o uso moderno da língua. Jakobson sugere que os fonemas podem ser abordados de maneira isolada pela caraterística de seus traços e em grupos de acordo como os traços se unem ou se excluem mutualmente em feixes de relações. No segundo tipo de abordagem, os fonemas se sucedem no fluxo da fala obedecendo ao critério de seleção imposto pelos traços de maneira semelhante como acontece no processo descrito em uma cadeia de Markov. Dessa forma, o estudo da língua adquire um componente estatístico para analisar como cada fonema determina o subsequente. No mesmo artigo, outro aspecto de destaque consiste na ênfase que, embora fossem estudados 11 traços distintivos, apenas 5,38 bits em média de informação11 eram necessários para que os falantes do idioma conseguissem distinguir entre dois fonemas. A utilização de traços redundantes e excedentes não se qualifica como um simples desperdício, mas como um recurso da língua a fim de que os interlocutores consigam resolver possíveis situações de incertezas no diálogo ocasionadas pela presença de ruído. Embora não contasse com os computadores modernos dos centros de pesquisa estadunidenses, Lévi-Strauss buscou fazer sugestões ao estudo do amigo utilizando simplesmente papel e lápis.
Jakobson não apenas se apropriou em suas próprias pesquisas de noções e conceitos que encontrou nos trabalhos de Nobert Wiener e Claude Shannon, como também destacava o grau de proximidade que unia os estudos realizados na linguística em relação àqueles produzidos pelos matemáticos que se dedicavam ao problema da transmissão de informação12. No mesmo sentido, Lévi-Strauss não deixou de enfatizar, anos mais tarde, como os linguistas Jakobson, Benveniste, Hjelmslev, entre outros, chegaram simultaneamente em resultados semelhantes àqueles explorados pelos engenheiros que realizavam suas pesquisas nos Estados Unidos e na Inglaterra.
No entanto, pesquisas realizadas de forma independente em laboratório pelos engenheiros de transmissão conduziriam, por volta de 1940, para conceitos muito semelhantes [aos da linguística]. Dessa maneira, tanto na realização de aparelhos que sintetizam a fala, como o famoso VODER, ancestral de toda uma linhagem de dispositivos mais aperfeiçoados, quanto na postulação teórica dos métodos intelectuais que regem os trabalhos dos especialistas em comunicação (apresentado pela primeira vez de maneira sistemática pelo engenheiro e matemático Claude Shannon), encontramos alguns grandes princípios de interpretação que são precisamente aqueles que a teoria linguística tinha conseguido formular: ou seja, a comunicação entre os homens repousa na combinação de elementos ordenados; as possibilidades de combinações são regidas em cada língua por um conjunto de compatibilidades e incompatibilidades; finalmente, a liberdade do discurso, assim como é definida no interior dos limites de tais regras, encontra-se vinculada no tempo segundo certas probabilidades.13
Lévi-Strauss observava com forte entusiasmo especialistas de áreas tão distantes como linguística, antropologia, psicologia, cibernética, teoria da informação e teorias dos jogos convergirem em seus respectivos trabalhos. Ele acreditava que o ponto em comum que ligava setores tão diversos do pensamento era justamente o tema da comunicação.
Na carta de 28 de outubro de 1952, o etnólogo escreve para o amigo russo informando sobre o projeto de um livro com o título provisório de “Tendências matemáticas em ciências sociais”, que seria o resultado de uma série de palestras programadas para o ano seguinte e que depois seriam publicadas pela editora do MIT14. Entre os capítulos esboçados para o livro, estavam: “Introdução matemática” que seria escrito por Schützenberger com o propósito de apresentar os tipos de matemáticas e o porquê de serem usadas em ciências sociais; “Teoria do parentesco e teoria da informação”, por Lévi-Strauss em colaboração com outro autor não confirmado na época; “Problemas econômicos na perspectiva de von Neumann e da teoria da comunicação”, escrito pelo matemático Guilbaud; “Psicologia e cibernética”, escrito pelo psicólogo Piaget; “Síntese matemática e perspectivas por vir”, escrito pelo também matemático Riguet; e, finalmente, um capítulo nomeado como “Psicanálise e comunicação” que seria escrito por Lacan. Embora o conjunto de palestras tenham ocorrido ao longo do ano de 1953, o livro que reuniria os resultados das apresentações nunca foi publicado.
Na cidade de Roma, Lacan apresentou, em 1953, o que poderíamos considerar como o seu manifesto político e epistemológico por outra psicanálise. Na conferência, o objetivo era demonstrar que o edifício teórico da disciplina precisava ser reorientado segundo o campo da linguagem, justificando essa mudança de rota em razão do que avalizava estar ocorrendo naquele momento com os trabalhos promovidos por Jakobson e Lévi-Strauss. Ele acreditava que os dois autores foram responsáveis por deslocarem o ser humano do centro da atenção ao proporem que existem leis simbólicas que operam à sua revelia. Para o nosso propósito, o mais importante é destacar que junto com o paradigma linguístico, estão presentes vários conceitos e noções que eram abordados na cibernética, na teoria da comunicação e na teoria dos jogos. Dessa forma, embora o livro imaginado por Lévi-Strauss não tivesse sido publicado, os ecos do paradigma informacional já tinha reverberado no psicanalista. Nesse sentido, os temas explorados ao longo dos seminários de 1954-55 e o conteúdo presente no artigo O seminário sobre A carta roubada seguem os rumos do diálogo que já estava ocorrendo há algum tempo entre o trabalho do psicanalista francês e o pensamento elaborado pelos matemáticos e engenheiros do paradigma informacional.
O triunfo da sintaxe
A seção nomeada como “introdução” no artigo O seminário sobre A carta roubada foi apresentada de maneira parcial na lição apresentada em 23 de março de 1955. Nela, Lacan começa abordando o que se tornou posteriormente o sistema composto de símbolos, números e letras que estão presente no artigo, lendo um pequeno trecho extraído do conto A carta roubada de Poe. No trecho em específico, após ter realizado o resgate da carta, Dupin busca justificar sua façanha através do relato sobre um garotinho prodígio que sempre ganhava dos amigos do colégio no jogo do ímpar ou par.
Conheci um garotinho de oito anos cujo êxito como adivinhador, no jogo de “par ou ímpar”, despertava a admiração de todos. Este jogo é simples e se joga com bolinhas de vidro. Um dos participantes fecha na mão algumas bolinhas e pergunta ao outro se o número é par ou ímpar. Se o companheiro acerta, ganha uma bolinha; se erra, perde uma. O menino a que me refiro ganhou todas as bolinhas de vidro da escola. Naturalmente, tinha um sistema de adivinhação que consistia na simples observação e no cálculo da astúcia de seus oponentes. Suponhamos, por exemplo, que seu adversário fosse um bobalhão que, fechando a mão, lhe perguntasse: “Par ou ímpar?”. Nosso garoto responderia “ímpar”, e perderia; mas, na segunda vez, ganharia, pois diria com os seus botões: “Este bobalhão tirou par na primeira vez, e sua astúcia é apenas suficiente para que apresente um número ímpar na segunda vez. Direi, pois, ímpar”. Diz ímpar e ganha. Ora, com um simplório um pouco menos tolo que o primeiro, ele teria raciocinado assim: “Este sujeito viu que, na primeira vez, eu disse ímpar e, na segunda, proporá a si mesmo, levado por um impulso a variar de ímpar para par, como fez o primeiro simplório; mas, pensando melhor, acha que essa variação é demasiado simples, e, finalmente, resolve-se a favor do par, como antes. Eu, por conseguinte, direi par”. E diz par, e ganha. Pois bem. Esse sistema de raciocínio de nosso colegial, que seus companheiros chamavam sorte, o que era, em última análise?
— Simplesmente — respondi — uma identificação do intelecto do nosso raciocinador com o do seu oponente.
— De fato — assentiu Dupin — e, quando perguntei ao menino de que modo efetuava essa perfeita identificação, na qual residia o teu êxito, recebi a seguinte resposta: “Quando quero saber até que ponto alguém é inteligente, estúpido, bom ou mau, ou quais são os seus pensamentos no momento, modelo a expressão de meu rosto, tão exatamente quanto possível, de acordo com a expressão da referida pessoa e, depois, espero para ver quais os sentimentos ou pensamentos que surgem em meu cérebro ou em meu coração, para combinar ou corresponder à expressão”. Essa resposta do pequeno colegial supera em muito toda a profundidade espúria atribuída a Rochefoucauld, La Bougive, Maquiavel e Campanella.
— E a identificação — acrescentei — do intelecto do raciocinador com o de seu oponente depende, se é que o compreendo bem, da exatidão com que o intelecto deste último é medido.
Esse pequeno trecho do conto de Poe se tornou objeto de comentário e de embate entre diversos autores daquilo que o psicanalista francês chamou de círculo cibernético. Para conseguirmos acompanhar os rumos das discussões, começamos pela interpretação sugerida pelo matemático Georges-Théodule Guilbaud e pelo médico e matemático Marcel-Paul Schützenberger, ambos vinculados ao Cercle d’études cybernétiques (CECyb).
Na França, Guilbaud se destacou sobretudo por seu papel como divulgador da teoria dos jogos, além de ter buscado vinculá-la aos estudos realizados na cibernética e na teoria da informação. Na conferência Pilotes, stratégies et joueurs, realizada no ano de 1953, o autor faz uso do conto de Poe para explicitar uma situação chamada de “puro jogo” e delimitar uma antiga controvérsia matemática sobre o acaso15.
Para compreender o raciocínio de Guilbaud é necessário saber que em teoria dos jogos o termo “jogo” visa simplesmente caracterizar o objeto de estudo da disciplina, que consiste na análise de situações em que os agentes precisam tomar decisões segundo o comportamento observado ou esperado uns dos outros. No caso específico em que dois agentes realizem suas decisões levando em consideração como agiu o outro e o ganho obtido não pode ser melhorado sem que também seja diminuído o ganho do outro, então, dizemos que o jogo atingiu um ponto de equilíbrio. Em outros termos, caso os agentes realizaram simultaneamente suas melhores jogadas e não se arrependem de suas escolhas, o jogo atinge um ponto que é chamado de equilíbrio de Cournot ou equilíbrio de Nash. Porém, o que ocorreria em outros casos em que o jogo não atinge nenhum equilíbrio e o ganho de um jogador represente perda equivalente para o outro? Isso é o que ocorre nos chamados jogos de soma zero.
Guilbaud destaca que é justamente nos casos em que não existe equilíbrio e os agentes não conseguem convergir suas ações para um acordo comum que observamos se instalar o “puro jogo”, o combate de um espírito contra o outro, o paroxismo da guerra. Nesse contexto, é esperado também que novos componentes, como o anseio dos agentes em disfarçar suas verdadeiras intenções ou prever os movimentos dos outros, sejam introduzidos no jogo. Em suma, os componentes da astúcia e do blefe são acrescentados. Guilbaud comenta que o relato sobre os garotinhos que se enfrentam no jogo de ímpar ou par ilustra perfeitamente o tipo de situação na qual dois espíritos lutam entre si.
A situação descrita no conto não merece muita atenção caso seja disputada em uma única partida, pois, nesse caso, vencer é tão provável quanto perder. A astúcia só se introduz quando os jogadores precisam repetir seus lances várias vezes e podem apreender mutualmente com suas respectivas estratégias. Poe relata que o garotinho prodígio tinha o poder de projeção tão grande sobre o intelecto do rival que nenhuma ação evasiva do oponente poderia despistá-lo. Nesse caso, haveria alternativa ao rival que não fosse sempre perder? Guilbaud responde que sim! O raciocínio especular do garotinho pode ser quebrado desde que o adversário jogue ao acaso, faça uma distribuição homogênea e randomize seus lances. No decorrer de várias partidas sucessivas, essa estratégia não fará com que ganhe, como tampouco fará com que perca. A estratégia de jogar de maneira aleatória garante ao menos o empate, independente do nível de inteligente do adversário.
Seguindo o mesmo racioncínio, Schützenberger publicou, no ano de 1949, um artigo que citava o mesmo trecho do conto de Poe com o objetivo de explicitar o embate entre dois oponentes e o melhor tipo de estratégia usada para reduzir as perdas16. A estratégia ótima que garante para cada jogador metade das vitórias consiste em escolher aleatoriamente entre cara ou coroa com uma probabilidade de 50%.
No seminário ocorrido em 23 de março de 1955, Lacan faz o seguinte comentário antes de entrar no sistema composto de símbolos, números e letras: “Construiu-se, ao que parece, uma máquina que joga o jogo de par ou ímpar. Não garanto nada porque não a vi, mas prometo-lhes que daqui até o fim destes seminários irei vê-la – nosso prezado amigo Riguet disse-me que ele me confrontaria com ela”17. Naquela altura, não apenas uma máquina capaz de disputar o jogo de par ou ímpar estava em atividade, mas foram criadas duas máquinas por dois engenheiros diferentes no Bell Labs. No começo da década de 1950, o primeiro projeto foi criado por David Hagelbarger18 e se chamou SEquence Extrapolating Robot (SEER) e o segundo foi uma versão simplificada produzida logo depois por Claude Shannon19 e recebeu o nome de Mind Reading Machine (MRM). As duas máquinas não apenas jogavam com oponentes humanos como também jogavam entre si. Embora essas máquinas tenham se tornado comuns hoje, eram consideradas como projeto de ponta naquela época por causa da implementação de memória com relés. Esse setor de pesquisa recebe o nome de machine learning atualmente.
Diferente dos autômatos criados no século XVII que apresentavam comportamento autocentrado e rotinas tão rígidas como aquelas realizadas por um relógio, os projetos de Hagelbarger e de Shannon já partem de uma concepção de máquina que interage com o meio e modifica seus próprios comportamentos. Nos dois artigos em que os projetos são apresentados, ambos os autores fazem referência ao trecho do conto de Poe sobre o jogo de ímpar ou par, contudo, suas máquinas adotam uma estratégia oposta àquela sugerida pelos membros do Cercle d’études cybernétiques. Elas não se satisfazem em simplesmente jogar de maneira aleatória para empatar com o adversário, mas jogam de maneira ofensiva com o objetivo de vencê-lo.
As máquinas de Hagelbarger e de Shannon adotam o mesmo pressuposto de que o adversário não jogará ao acaso e cairá em padrões ao longo de várias jogadas. Nesse sentido, cada máquina registra o lance de cara ou coroa com os sinais de “+” e “–”, armazena na memória interna sequências de lances e joga de maneira aleatória até que consiga reconhecer o padrão de comportamento do adversário. Em seu artigo, Hagelbarger comenta que em 9.795 partidas disputadas contra funcionários e visitantes do Bell Labs, seu projeto ganhou 5.218 e perdeu 4.577 vezes. Na disputa entre os dois projetos, embora o robô explorador de sequência de Hagelbarger obtivesse vantagem em jogos curtos, sempre era derrotado pelo modelo simplificado e mais ágil projetado por Shannon em uma proporção média de 55 contra 45 em jogos de 100 lances. Shannon sugere que, embora seja difícil para o ser humano memorizar cada sequência de lances e lidar com muitos cálculos, o melhor método para vencer consiste em repetir o mesmo padrão certo número de vezes e alternar o comportamento sempre que for interceptado pela máquina.
Lacan deixa claro que o propósito de apresentar o sistema formado pelos símbolos, números e letras consiste em demonstrar como o conteúdo produzido em “associação livre” nas sessões se constrange de acordo com leis sintáticas que operam à revelia do falante. Nesse sentido, o autor substitui os lances de “cara” e “coroa” de uma moeda pelos símbolos de “+” e “−”. Com isso, podemos construir uma série qualquer de acordo com uma sucessão de lances aleatórios:
A série produzida aleatoriamente nos diz simplesmente que qualquer símbolo pode surgir após o outro, sem que possamos reconhecer alguma influência do antecedente sobre o subsequente. Em seguida, cada trio de símbolos são agrupados e transcritos como números. Dessa forma, substituímos por “1” os casos de trios simétricos e constantes: “+ + +” e “− − −”; por “2” os trios dissimétricos: “− + +”, “+ − −”, “− − +” e “+ + −”; e por “3” os trios simétricos e alternantes: “− + −” e “+ − +”. A série transcrita se lê da seguinte forma:
Embora nossa série tenha sido construída de maneira aleatória, é possível perceber que os números não se sucedem em qualquer ordem. Notamos que nunca passamos do “1” ao “3” ou do “3” ao “1” sem que o “2” esteja no intervalo entre eles. Também observamos que o “2” sempre aparece em número ímpar de vezes na passagem do “1” ao “3” ou do “3” ao “1”. Essa transcrição revela que existem leis sintáticas responsáveis por impor certa regularidade na sucessão dos números e, consequentemente, no encadeamento dos símbolos que surgem na série de “+” e “−”. Em outros termos, poderíamos dizer que na sequência de números existe uma memória responsável por fazer com que “se lembre”, por exemplo, que saindo do “1” deverá passar em número par de vezes pelo “2” para então retornar até o “1” ou em número ímpar de vezes pelo “2” para então chegar até o “3”. Essas leis podem ser melhor visualizadas com o auxílio do seguinte grafo orientado, também chamado de cadeia de Markov, cujo sentido das flechas indicam os percursos possíveis.
O procedimento descrito por Lacan para tratar da máquina de ímpar ou par é análogo e conhecido por todos aqueles que lidam com decifração. Qualquer língua possui uma fonte, o alfabeto, da qual são selecionadas letras que deverão ser empregadas respeitando certas leis e ordens para compor fonemas, palavras e frases que façam sentido no respectivo idioma. Imaginemos construir uma sentença legível na língua portuguesa, mas fazendo uso de um método probabilístico. Na língua portuguesa existe uma frequência relativa para o surgimento das letras: A – 14,6%, E – 12,5%, O – 10,7%, S – 7,8%, R – 6,5%, I – 6%, N – 5%, D – 4,9%, etc. Se tivéssemos uma urna e extraíssemos uma letra por vez, assim como os números são retirados de uma loteria, estaríamos trabalhando no grau zero da língua e dificilmente obteríamos algo legível em português. Porém, em razão da mesma base estatística presente nas línguas, sabemos também que o surgimento de qualquer letra condiciona outra subsequente. Assim, se ao invés de uma, cada vez extraíssemos duas letras do interior do tesouro da língua, faríamos uso de diagramas e trabalharíamos no grau 1 da língua. Por exemplo, em português, geralmente depois da letra “ã” surge o “o” ou o “e”. Em seguida, poderíamos acrescentar mais uma letra e operar com trigramas e, assim, trabalharíamos no grau 2 da língua. Nesse caso, teríamos possibilidades como “ãos” e “ães” que já são mais familiares aos usuários da língua. Esse experimento poderia ser continuado e passaríamos ao uso de tetragramas, pentagramas, etc., com o objetivo de formar palavras, frases ou até mesmo construir textos com base puramente estatística. O procedimento de ligar dados aleatórios uns aos outros de acordo com o nível de ocorrência é conhecido como cadeia de Markov e os elos encadeados ao longo do processo origina aquilo que é chamado de série estocástica.
A partir da cadeia de Markov se constrói relações entre dados que se ligam uns aos outros segundo o critério de seleção e escolha, cujo o campo de opções estrutura o repertório de ações concebíveis a serem realizadas. Dessa forma, o repertório compreende o conjunto dos possíveis encadeamentos e das prováveis transições que são efetuadas entre os dados (se “ã”, logo, “o” ou “e”; se “ão”, logo, “ãos”; se “ãe”, logo, “ães”). Quem conhece suficientemente o repertório sabe que algumas de suas ligações são feitas com excesso de redundância e com certo nível de previsibilidade. Porém, também reconhece que o conjunto de ligações circunscritas pelo repertório, justamente por serem realizadas de maneira desigual e desuniforme, não esgotam todas as combinações possíveis da fonte (no caso, do alfabeto). Na medida em que ligações menos frequentes e inesperadas entre os dados se formam, o repertório precisará se expandir para metabolizá-las e incorporá-las.
Na verdade, várias operações de seleção e escolha que são circunscritas pelo repertório da língua e do indivíduo se realizam de forma muito rápida ao falar e escrever. Elas só não são percebidas pelo agente porque se realizam, digamos, de maneira automatizada, graças ao constante e reiterado aprendizado. Essa mesma lição foi empregada em outras áreas. No conto O escaravelho de ouro, Poe mostrou ao leitor como o problema de decifrar uma mensagem criptografada poderia ser convertido em uma questão probabilística relacionada com o problema da seleção, escolha e decisão. Inspirado na tabela de frequência da língua inglesa criada poucos anos antes por Samuel Morse, o autor fez com que o personagem Legrand analisasse o criptograma que levaria ao tesouro do capitão Kidd com base no idioma da mensagem cifrada e como seus sinais são distribuídos. Depois de sucessivas aproximações do criptograma, podemos até não conhecer como ocorreram todas as transformações sofridas pela mensagem original, mas também não somos totalmente ignorantes sobre o seu conteúdo. Chegando mais próximo ao fim da decifração, o texto se autodecifra graças ao seu próprio contexto.
Lacan comenta que precisamos realizar outra transcrição sobre o resultado da série de númenos para adentramos nas propriedades do significante. Essa transcrição consiste em produzir uma nova ordenação ternária, mas desconsiderando o termo do meio. Isso significa converter, por exemplo, o ternário “(2)(1)(3)” no binário “(2) − (3)”. Dessa vez, substituiremos por α (alfa) os casos de trios cujos extremos são formados por duas simetrias: “(1) − (1)”, “(3) − (3)”, “(1) − (3)” ou “(3) – (1)”. Por β (beta) os trios compostos de uma simetria com uma dissimetria: “(1) – (2)” ou “(3) − (2)”. A letra γ (gama) substituirá os trios formados por duas dissimetrias: “(2) – (2)”. E, por fim, trocaremos por δ (delta) os trios constituídos de uma dissimetria com uma simetria: “(2) – (1)” ou “(2) – (3)”. Essa nova transcrição nos dará o seguinte resultado:
À primeira vista, tudo parece possível na série construída. Qualquer letra parece surgir após qualquer outra letra, sem que nenhuma restrição se sobreponha em sua sucessão. Lacan afirma que isso ocorre porque as determinações simbólicas se tornam opacas ao nível do significante. Isso significa que existem leis operando sobre essa cadeia aparentemente aleatória, embora não estejam evidentes.
A opacidade das leis que regem o ordenamento da cadeia acontece porque suas restrições só ocorrem sobre o terceiro termo de uma dada sucessão de letras. Caso tenhamos no primeiro termo um “α” ou um “δ”, por exemplo, o segundo termo pode ser ocupada por qualquer letra, mas o terceiro termo só poderá ser um “α” ou um “β”. Por outro lado, caso tenhamos no primeiro termo um “γ” ou um “β”, o segundo termo pode ser qualquer letra, mas o terceiro termo apenas poderá conter um “γ” ou um “δ”. O conjunto de possibilidades e impossibilidades de aparecimento das letras na cadeia pode ser agrupado no seguinte quadro esquemático.
As letras que surgem no andar superior no 1° tempo impõem sobre o 3° tempo que apareçam apenas aquelas letras do andar superior e sejam excluídas aquelas do andar inferior. Desde que tenhamos como referência o andar inferior do 1° tempo, os casos de possibilidade e impossibilidade no 3° tempo são o inverso do exemplo anterior. Com isso, somos introduzidos na propriedade temporal de antecipação da cadeia significante. No mais, podemos também fixar o 4° tempo na série. Nesse sentido, o 2° tempo não poderá mais conter qualquer uma das quatro letras gregas. Embora parecesse que o 2° tempo não sofresse qualquer influência, notamos agora que suas restrições são impostas pela letra que lhe sucede e ocupa o 4° tempo na cadeia. Dessa forma, além da propriedade temporal de antecipação, contamos ainda com o movimento de retroação da cadeia significante. Podemos articular os quatro termos de uma dada sequência de letras com o modelo temporal da seguinte maneira:
O 1° tempo da sequência antecipa os termos que são possíveis e impossíveis no 3° tempo. Por sua vez, o 4° tempo da sequência retroage sobre os termos do 2° tempo, indicando quais são possíveis e impossíveis. O estabelecimento simultâneo do 1° tempo e do 4° tempo coloca restrições sobre os termos intermediários da cadeia.
Lacan comenta que o percurso subjetivo se repete contornando o furo localizado no intervalo entre o 1° tempo e o 4° tempo. Se analisarmos uma sequência composta de quatro termos e estabelecermos duas letras quaisquer para ocuparem o 1° tempo e o 4° tempo, então, existirão 16 maneiras diferentes de combinar letras no 2° tempo e no 3° tempo. Independente das letras que ocupem o 1° tempo e o 4° tempo, sempre serão excluídas 12 ou ¾ das 16 combinações no 2° tempo e no 3° tempo. Lacan refere-se com o termo caput mortuum ao conjunto das 12 combinações excluídas. Essa expressão significa cabeça morta ou resto inútil no latim e era usada na alquimia para designar o resíduo do qual nada mais pode ser extraído após realizada uma operação. Nesse caso, os cálculos da máquina lacaniana de jogar ímpar ou par são empregados e realizará seus contornos e loopings ao redor representado pelas 4 ou ¼ de combinações que restaram como possíveis.
A seção nomeada como “introdução” que foi publicada na primeira versão do artigo O seminário sobre A carta roubada, em 1956, é concluída com um comentário nada generoso com o leitor de que os quatro tempos das letras gregas guardam relação com o esquema L. Na sessão intitulada como “parênteses dos parênteses”, acrescentada na revisão do artigo em 1966, Lacan se mostra desapontado porque seus leitores não conseguiram interpretar o comentário e afirma que bastava realizar uma nova transcrição da cadeia de “+” e “−”. Essa nova transcrição consiste em substituir os “δ” por “)”, os “β” por “(”, os “α” por “1” e os “γ” por “0”. A série transcrita novamente se lê da seguinte forma:
Philippe Matherat20, pesquisador do Télécom-Paris (École Nationale Supérieure des Télécommunications), sugere relacionar o encadeamento da série constituída pela abertura e pelo fechamento de parênteses com o esquema L, da seguinte maneira:
As sessões nomeadas como “introdução” e “parênteses dos parênteses” antecedem logicamente aquela outra sessão na qual ocorre o estudo do conto que foi escrito por Poe. As duas partes que são consagradas ao encadeamento da série de “+” e “−” servem para explicitar como o inconsciente é regido por leis que se organizam de maneira autônoma e independente da intencionalidade do indivíduo. A parte dedicada ao conto é uma aplicação prática em uma obra literária dessa lição extraída. Lacan faz uso da polifonia presente no francês entre carta (lettre), letra (lettre) e ser (l’être), com o objetivo de demonstrar como os personagens do conto sofrem, em seu próprio ser, os efeitos do encadeamento da sintaxe do significante.
Poe entre os franceses
No círculo literário americano, o trabalho de Edgar Allan Poe foi recebido com aspereza em razão do privilégio dado ao conto, do estilo usado na composição dos textos e do interesse em abordar temáticas sem utilidade prática e moral para o leitor. Por outro lado, no velho mundo, sua chegada foi celebrada com fascínio e admiração entre os escritores franceses Baudelaire, Valéry e Mallarmé. Na França, o interesse por sua obra também se estendeu além dos limites da atmosfera literária e despertou interesse em outras áreas.
A psicanalista Marie Bonaparte publicou uma obra sobre o trabalho de Poe dividida em três volumes, lançados entre 1933 e 1958, contento quase 900 páginas e chancelada com um prefácio repleto de elogios escrito pelo próprio Freud. Na obra, Bonaparte buscou lançar luz sobre os aspectos sombrios e enigmáticos presentes em seus contos se valendo do quadro interpretativo fornecido pela psicanálise. Seu método consiste em encontrar na trama e nos personagens traços da personalidade do autor que os moldou de maneira inconsciente. Nesse sentido, o tema das mulheres precocemente assassinadas é interpretado como uma elaboração da morte da mãe e da esposa, os personagens masculinos cruéis e sádicos se convertem em representações da figura tirânica do pai e o interesse por charadas se transforma em uma consequência da curiosidade despertada na infância sobre os órgãos sexuais dos adultos.
Denis Marion publicou o livro La méthode intellectuelle d’Edgar Poe, em 1952, com o objetivo de explicitar o que identificou como o método analítico do escritor norte-americano21. O autor explica que os personagens de suas histórias utilizam um método capaz de produzir deduções rigorosas e de gerar descobertas sistemáticas, assim como o método presente na matemática, mas que se distingue da álgebra porque seu campo de aplicação se destina ao ser humano e consiste na capacidade que um espírito possui de ler o pensamento do outro. A tese do livro busca sustentar que Poe encontrou inspiração para o método analítico na técnica usada pelos jogadores de dama, uíste e bridge. Nesse sentido, o trunfo na manga do grande jogador depende da capacidade de espelhar o que o adversário demonstra em cada uma de suas expressões de vitória, surpresa ou raiva, cada um de seus indícios de embaraço, hesitação ou euforia, com o objetivo de transformá-los em signos do estado mental do outro. A acuidade do diagnóstico sobre o espírito do oponente permite identificar sua mão e também planejar o melhor tipo de estratégia para vencê-lo. Dessa forma, Marion coloca o detetive Dupin e outros personagens criados por Poe como figuras que solucionam diversos enigmas e mistérios graças a um método de investigação baseado no exame psicológico do outro.
Na republicação da conferência Pilotes, stratégies et joueurs, Guilbaud acrescentou duas notas de rodapé relativas ao livro de Denis Marion em que sublinha sua total ignorância acerca do pensamento matemático sobre os jogos e critica o tipo de abordagem que usou na leitura do conto de Poe. Em sua crítica, o matemático sugere que o problema de ler o pensamento do outro representa uma questão lógica e menciona o artigo Le temps logique escrito por Lacan como um contraponto à interpretação de Marion. “Em ‘A carta roubada’. No seu ensaio, o Sr. Marion parece negligenciar o problema fundamental: não se trata apenas de ‘ler o pensamento’ do outro. Trata-se de lógica e não ‘psicologia’. Uma análise profunda foi tentada pelo Sr. Lacan em ‘O tempo lógico’”22. Guilbaud cita o artigo de Lacan como exemplo de uma interpretação acerca da interação intersubjetiva em que o componente lógico ocupa o primeiro plano.
Em resumo, o artigo Le temps logique escrito por Lacan aborda o assunto da interação intersubjetiva por intermédio de um relato em que 3 agentes precisam decifrar qual cor de disco carregam sem saber, com base apenas na observação do comportamento uns dos outros. O artigo busca explicitar como o componente lógico da contagem de discos se relaciona com o componente temporal responsável por influenciar na pressa, na hesitação e na afirmação dos agentes sobre suas respectivas cores. Sob esse ângulo, não causa surpresa que Lacan estivesse tão interessado que o texto fosse lido pelos matemáticos Guilbaud e Riguet23.
Assim como ocorre em Le temps logique, Lacan realiza sua interpretação do conto A carta roubada de Poe sublinhando como os componentes da lógica e do tempo influenciam na interação entre os personagens da história. Em sua interpretação, os personagens precisaram calcular em diversos momentos sucessivos como se comportam individualmente (1 + 1 + 1 + n), como são capturados nas relações de amor, de rivalidade e de identificação (1 + 1), como se posicionam em relação à ação efetuada pelos outros dois (2 + 1) e como todos orbitam ao redor de um objeto de interesse comum (3 + 1). O novo passo que o autor busca realizar na sessão do artigo dedicada ao conto de Poe consiste em justificar que, subjacente ao plano no qual os diferentes personagens interagem uns com os outros, encontra-se outro plano no qual suas respectivas ações são regradas e moldadas de maneira semelhante ao trabalho executado por uma máquina estratégica. Essa referência incorporada graças ao convívio com seus amigos cibernéticos, faz com que o trabalho de Lacan se distancie definitivamente da psicanálise aplicada ao autor de uma obra literária, como realizada por Bonaparte, e da análise especular em que os personagens leem os pensamentos uns dos outros, como proposto por Marion.
A máquina estratégica
Lacan separa o conto A carta roubada de Poe em diversas cenas com cada uma incluindo três lugares vazios e um eixo central no qual todos os personagens orbitam ao redor. Em cada uma das cenas, os personagens precisarão efetuar suas respectivas ações com base no comportamento esperado ou observado nos outros e, em seguida, deverão apressar seus passos para ocupar os lugares que estão disponíveis. No término de cada cena, o lugar ocupado pelo personagem acabará por modelar seu sucesso, cegueira e destino. Na transição entre cenas, toda dança de cadeiras recomeça. As diversas cenas podem ser consideradas como sucessivos jogos cujos agentes ficarão encarregados de cadenciar mutualmente suas ações e hesitações para ocupar os lugares vazios que estão distribuídos na trama do conto. Portanto, o destaque da leitura recai nos próprios lugares vazios e como são revezados entre os agentes, colocando, assim, em segundo plano seus aspectos psicológicos e suas histórias dramáticas.
Primeira escansão
Na primeira cena, o ministro entra no quarto real e observa que a rainha ficou aparentemente apreensiva com sua chegada. O narrador da história nos relata que, nesse momento, a rainha precisou pensar rapidamente sobre o que fazer com uma carta que lhe era destinada, suas opções eram escondê-la na gaveta ou disfarçá-la colocando à vista de todos sobre a mesa. Por sua vez, o ministro, sem saber o que estava ocorrendo antes de chegar, relaciona o nervosismo da rainha com a carta que vê sobre a mesa. Ele também não sabe se o conteúdo da carta é incriminatório ou supérfluo. O ministro, agindo de maneira muito arriscada, faz uma espécie de triagem para extrair informações sobre a relevância da carta se baseando na reação do outro, pois imagina que uma rainha inocente não vai temer caso o rei veja o objeto, mas uma rainha culpa sim. A reação de torpor da rainha por causa da presença do rei sugere que a carta é uma prova. Com essa informação, o ministro pode escolher entre fingir que nada viu ou roubar a carta para utilizá-la em seu benefício próprio. Caso escolhesse por fingir que nada viu, o jogo terminaria nesse instante com os personagens não obtendo nenhum ganho e também nenhuma perda. Por fim, o ministro opta por roubar a carta da rainha e sai do recinto deixando uma carta falsa no lugar da primeira.
É importante destacar que o caminho escolhido pelo escritor do conto como desfecho da cena não esgota todos os caminhos que eram possíveis de serem explorados. A rainha poderia ter optado por esconder sua carta na gaveta, nesse caso, o ministro dificilmente passaria ileso se resolvesse bisbilhotar o quarto na presença do casal real. Por outro lado, é razoável supor que cedo ou tarde o rei encontraria uma carta que estivesse escondida em seu próprio quarto, visto que possui acesso irrestrito a todos os espaços do reino, e a rainha se envolveria, assim, em complicações muito mais graves do que com o ministro.
Dessa forma, o episódio do aposento real expõe um cenário que não se organiza como uma relação de pura rivalidade entre dois adversários, mas como um jogo de coordenação mútua disputado entre três agentes. Nele, o ministro vê a rainha, que vê o rei, que nada vê. As três ações coordenadas sucedem três lugares distintos que ressurgirão posteriormente fornecendo estrutura ao conjunto da trama presente no conto: o lugar de posse da carta, o lugar de torpor e o lugar de cegueira.
O roubo da carta só faz com que se inicie o longo embate silencioso entre o ministro e a rainha. A princípio, o ministro possui como opção entregar a carta imediatamente ao rei e revelar os interesses secretos da rainha. Porém, depois de realizada essa ação, o ministro aumentaria sua influência na corte por ter demonstrado sua servidão ao rei, mas perderia imediatamente o poder de chantagear a rainha. O ministro escolhe a chantagem. Por sua vez, a rainha pode optar entre provocar para que o ministro revele o conteúdo da carta ou ceder às suas ameaças. Se o ministro fosse provocado e levado a expor a carta depois de 18 meses, é provável que, assim como a rainha, sofresse danos à sua reputação por ter guardado o segredo por tanto tempo. É importante destacar que em vários momentos o ministro é representado como alguém capaz de se submeter a todos os tipos de perigos e a cometer ações que beiram a irracionalidade, esses signos servem como indício sobre sua potencial ameaça aos adversários que resolvam enfrentá-lo. A rainha prefere não pagar pra ver e escolhe por ceder às suas ameaças. Contudo, caso a rainha resolvesse provocar o seu rival, dessa vez, interpretando os signos como o blefe de um jogador que teme sofrer graves prejuízos, então, talvez o ministro preferisse escolher não expor o conteúdo da carta e a rainha pudesse não apenas se livrar da condenação como também levá-lo à prisão por conspiração contra a corte. Porém, não é o que ocorre. A rainha preferi agir com prudência e opta por ceder as ameaças e o ministro escolhe não fazer uso do poder que tem em mãos não expondo a carta. A inação do ministro encerra os atos da primeira cena e inaugura outra cena.
Segunda escansão
Na segunda cena, o ministro ocupa o mesmo lugar de imobilidade que anteriormente era ocupado pela rainha. Porém, o pequeno minueto que compõe o conto convida para sua dança o inspetor de polícia e o detetive Dupin que deverão, agora, coordenar mutualmente seus passos para ocupar os lugares vazios que foram deixados pelos personagens da cena anterior.
Nessa altura, o ministro já sabe que o inspetor de polícia foi contratado pessoalmente pela rainha para ficar a cargo do resgate da carta. Como relatado entre os personagens do conto, o ministro possui como opção entregar a carta para terceiros. Contudo, caso agisse assim, não poderia usá-la quando fosse necessário e seu cúmplice poderia ser capturado em uma das revistas rotineiras que eram realizadas pela polícia em todos que saiam de sua residência. O ministro tem também como alternativa esconder a carta em um lugar sigiloso, porém, novamente poderia ser pego pelo inspetor de polícia, visto que sua função lhe confere os recursos necessários para acessar todos os espaços possíveis na cidade. Como na primeira cena, o personagem escolhe por não esconder a carta e acaba por deixá-la à vista de todos em sua residência.
O inspetor de polícia recorre ao auxílio do detetive Dupin após ter realizado diversas tentativas frustradas procurando por uma carta escondida e não conseguindo ver nada que estivesse fora do alcance de seu método. Conhecendo o tipo de estratégia empregada pela polícia em sua busca, o detetive pode incentivá-la a continuar usando e, assim, não despertar a atenção do ministro sobre a presença de mais um agente na investigação, enquanto utiliza outro tipo de estratégia em sua própria inspeção. O detetive orquestra o tumulto na frente da casa do ministro para distraí-lo e, em vez de buscar por uma carta escondida, realiza sua varredura procurando uma carta disfarçada e exposta à vista de todos. Na segunda visita, Dupin rouba a carta do ministro e sai do local deixando outra carta falsa. Depois de ter recuperado a carta, o detetive ainda fica cerca de 1 mês em total silêncio e sem realizar qualquer ação. A inação do detetive só é suspensa quando recebe a visita do inspetor de polícia, que, após receber de suas mão uma carta, saí imediatamente do escritório.
Antes de darmos continuidade, façamos um pequeno parêntese importante: não haveria alternativa melhor para o ministro do que ser pego por um dos dois oponentes? A primeira vista imaginaríamos que todas as alternativas à sua disposição poderiam ser interceptadas seja pelo inspetor de polícia seja pelo detetive, contudo, existe outra ação possível, relatada pelo próprio Dupin, na qual o ministro não poderia ser pego por qualquer um dos dois. Ela consistiria na simples destruição da carta. Se optasse por essa alternativa, o ministro poderia continuar com suas chantagens ao menos tempo que não carregaria consigo nenhuma prova do crime, apenas o testemunho da rainha. Nesse caso, se o ministro forjasse uma carta falsa, aquela supostamente recuperada pelo detetive não seria a mesma que foi furtada da rainha. O ministro possui todos os meios para realizar esse lance já que a carta não foi vista pelo inspetor de polícia ou pelo detetive e a própria rainha talvez não pudesse sequer reconhecê-la depois de um período tão longo após o roubo. Com o roubo de uma carta falsa, não seria o detetive que anteciparia o movimento do ministro, mas, ao contrário, o ministro que estaria simultaneamente um passo a frente do raciocínio do inspetor de polícia e do detetive. Porém, não é o que ocorre.
Embora cada personagem individualmente disponha de liberdade suficiente para tomar suas decisões, observamos que certas ações são redundantes e realizadas de forma reiterada por diferentes personagens. O episódio na residência do ministro acaba se organizando, mais uma vez, em torno de três tipos de ações que são exercidas por três personagens diferentes. Nessa cena, o detetive vê o ministro, que vê o inspetor de polícia, que nada vê. O excesso de redundância termina por demarcar os lugares que, como ocorre em uma dança de salão ritmada pela posição e pela alternância dos parceiros, serão ocupados pelos personagens que coordenam mutualmente seus respectivos passos. Dessa vez, o minueto se organiza com o lugar de posse da carta sendo ocupado pelo detetive Dupin, o lugar de torpor ocupado pelo ministro e o lugar de cegueira ocupado pelo inspetor de polícia. Assim, o conto se estrutura de tal maneira que forma e conteúdo compõe uma única unidade.
Lacan enfatiza que o mérito de Dupin não reside em ser mais ou menos inteligente do que os outros personagens, mas por ter conseguido meditar de forma adequada sobre os lugares vazios e o percurso da carta. Essa nova versão do detetive de Poe criada pelo psicanalista francês serve para reposicionar o edifício teórico da psicanálise no campo da ciência conjectural, que se baseia na metabolização do acaso e na decifração de suas leis labirínticas, e ensinar uma nova geração de analistas sobre como uma mensagem sem conteúdo pode ser interceptada através da redundância e da distribuição de lugares contidas na história particular de um indivíduo. Diferente do que o historiador Carlo Ginzburg sugere, aqui o romance policial não serve como referência por causa da técnica baseada no faro adivinhatório do investigador, graças ao qual consegue captar os pequenos indícios que são menosprezados pela maioria das pessoas e que permitem reconstruir uma cena oculta24.
Terceira escansão
Poe conclui o conto querendo convencer seu leitor sobre o golpe de gênio realizado pelo detetive Dupin que foi capaz de colocar o ponto final na epopeia do resgate da carta da rainha. Porém, o leitor convencido com o relato pode deixar de observar o aviso colocado pelo próprio escritor na epígrafe do conto, cuja expressão em latim diz: “Na sagacidade, nada é mais funesto do que ser esperto demais”. A mensagem pode ser endereçada ao ministro que se achava muito esperto na primeira cena e que se viu enganado na segunda cena, mas também e sobretudo ao destino reservado ao detetive na cena final do conto.
É lícito dizer que o percurso da carta acabou após ter sido resgatada pelo detetive e entregue nas mãos do inspetor de polícia? Certamente não! A própria inação do detetive depois que se apoderou da carta já sugere que sua posição mudou de lugar e outra cena começou. É digno de nota que ao longo de todo o conto é criada uma atmosfera de amor, tensão e rivalidade em torno do ministro e do detetive, insinuando que ambos são muito mais do que só conhecidos. No começo da história, Dupin se mostrava disposto a cooperar com o inspetor de polícia até ouvir do personagem que o ministro era um imbecil por ser um poeta, algo que o fez se sentir pessoalmente insultado por causa dos versos que escreveu no passado. Nessa altura, o detetive e o ministro são um único e mesmo ser. Já na última cena, Dupin relata que o episódio da carta lhe ofereceu o momento oportuno para provar sua simpatia pela rainha e para se vingar da afronta que o ministro o causou outrora. O detetive não só queria vingança como também desejava que o ministro soubesse quem o atingiu, assim, forjou uma carta falsa, carimbada com as iniciais de ambos, na qual portava o seguinte trecho extraído de Crébillon: “Um desígnio tão funesto, se não é digno de Atreus, é digno de Tiestes”. Na mitologia grega, Atreus e Tiestes são representados como dois irmãos que estão sempre envolvidos em brigas. Como forma de se vingar por causa da traição cometida com sua esposa, Atreus mata seus sobrinhos, os filhos de Tiestes, cozinha suas carnes e serve em um suposto jantar de conciliação fraternal. O tema da vingança também aparece no conto O barril de Amontillado escrito por Poe. Em ambas situações, por um lado, Dupin, Atreus e Montresor só se envolvem com os inimigos por causa da sede de vingança e com o propósito de trai-los e, por outro lado, o ministro, Tiestes e Luchresi buscam estreitar os laços sem o temor da revanche e querendo instaurar a trégua.
Na terceira cena, o personagem que parecia agir apenas motivado por interesse financeiro e neutro em relação aos problemas da realeza, demonstra que uma parcela de seu honorário foi pago com o sofrimento infligido contra o ministro e que tomou o partido da rainha. Contudo, por estar capturado na relação de rivalidade com o ministro, Dupin não se vê posicionado no mesmo lugar no qual antes conseguiu decifrar. Dessa forma, o mesmo efeito de torpor gerado outrora na rainha e no ministro, se encarna, agora, no completo estado de silêncio vivido pelo detetive no período em que esteve em posse da carta.
A posição ocupada pelo detetive só se revela porque outro agente entrou na terceira cena e passou a ocupar o mesmo lugar que era situado pelo personagem na cena anterior. A exata posição espacial na qual o agente ocupa agora lhe permite que, sem ser visto, veja que o detetive vê o ministro, que nada vê. Esse novo agente que foi convidado para participar do pequeno minueto do conto e que ocupou o lugar daqueles que vêem sem serem vistos se encarna, agora, no próprio Lacan.
As três cenas do conto são compostas por dois lugares e um terceiro que é ocupado pelos agentes que, após meditarem e realizarem o sobrevoo sobre todos os lugares para aprender acerca de suas respectivas funções, surgem para encarná-lo. Essa delimitação do problema lança luz sobre o interesse de Lacan em destacar e reinterpretar o enunciado freudiano: wo Es war, soll Ich werden. Com o objetivo de extrair o sentido da máxima freudiana no interior do contexto de discussão lacaniano, poderíamos expressá-la da seguinte maneira: lá onde o sujeito (S) interrogou sobre os lugares e suas funções (Es), ali precisará se situar agora como eu (Ich). Seguindo no campo semântico da teoria dos jogos, poderíamos dizer também que o jogador que analisou suas jogadas anteriores e inventariou o repertório de lances em sua interação com os outros, deverá escolher uma jogada e efetuar sua aposta. Porém, o sujeito joga contra quem?
Wiener25 dizia que o objetivo do trabalho científico consiste em descobrir como o universo se organiza, porém, para realizá-lo, o cientista precisava lutar contra o seu principal inimigo, o aumento da desordem e da entropia. Para o pai da cibernética, o problema principal era saber se o cientista, ao tentar decifrar os segredos da natureza, encontraria um oponente do tipo do demônio agostiniano ou do demônio maniqueu. O demônio agostiniano exige todo o esforço do pesquisar para conseguir decifrá-lo, mas, uma vez descoberto os seus mistérios, poderá ser exorcizado e não buscará ludibriar e mudar de política sobre os assuntos já estabelecidos. Nesse caso, o pesquisador luta contra sua própria ignorância e com sua falta de informação. Por sua vez, o demônio maniqueu faz uso da astúcia e do blefe e alterna de política tão logo possa ser descoberto, desorientando e largando o oponente no escuro. Nesse caso, o pesquisador combate um jogador de pôquer capaz de realizar diversas artimanhas para sair vitorioso. Wiener não admite que o cientista em seu trabalho de decifração possa enfrentar um jogador e prefere depositar o motivo dos eventuais fracassos na carência de informação. Quando escolhe um conto em que todos os personagens são enganados e composto com arranjos fortuitos e carregados de pistas falsas para desviar e despistar o leitor, Lacan parece querer dizer que o ofício do psicanalista exige uma posição mais cautelosa por não encontrar refúgio em uma luta limpa contra um oponente digno. Isso não significa dizer que o analisando engana o analista ou vice-versa, mas que, assim como ocorre na história de Poe, o papel do enganador e do enganado depende apenas da posição que ocupam em determinado instante no tabuleiro.
Ninguém consegue parar o percurso indestrutível da carta e todos são modelados em seus atos, sucessos e fracassos segundo cada uma das etapas do deslocamento. Talvez o correto seja dizer que não existe um só percurso trilhado pelo deslocamento de uma única carta, mas várias cartas cujos trajetos são alongados, desviados e suspensos: uma carta deixada pelo ministro na mesa da rainha, outra que passou pelas mãos do ministro e do detetive para ser entregue ao inspetor de polícia e aquela endereçada pelo detetive e aguardando ser aberta pelo ministro. Da mesma forma, dizer que toda trama da carta se encerra nas três cenas do conto parece reduzir os efeitos sobre todos aqueles que entram em seu circuito. Para ficarmos em um único exemplo, Prado de Oliveira26 mostrou como na grande cisão da psicanálise francesa, ocorrida no começo da década de cinquenta, três personagens sofriam os efeitos da carta legada por Freud, seus nomes: Bonaparte, Nacht e Lacan. Na correspondência enviada para Loewenstein, em 14 de julho de 1953, Lacan dispara contra Bonaparte: “Certamente, podemos considerar que os atos dessa pessoa sempre foram nefastos em nosso grupo. As relações são deturpadas pelo prestígio social que extraí de sua relação com Freud e o modo como é ouvida por todos com uma paciência que assume ares de aprovação. O respeito e tolerância com uma idosa desmoraliza os jovens, que nos veem na posição de uma ridícula submissão”27. E logo em seguida comenta sobre Nacht: “Fui posto à prova da mais constante e desoladora traição. Nacht, com quem eu tinha feito amizade, comportou-se de uma maneira que, sempre que sua esposa ligava para falar com a minha, eu podia encontrar o indício certeiro de que ele me daria um novo golpe nas próximas 48 horas”28. Por sua vez, Loewenstein fingiu que nada viu e preferiu não responder o ex-analisando, alguns anos depois terminou marcando sua preferência pelos interesses políticos da princesa e seu grupo. Esse episódio demonstra mais uma vez como os seres humanos são arrebanhados e seus destinos, suas alegrias, suas missões e seus infortúnios são determinados de acordo com o percurso da carta.
1Lacan, J. O seminário II: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 226.
2“Fui pescar esse ‘Seminário sobre A carta roubada’, e penso, afinal, que o fato de eu o haver colocado na frente, apesar de toda a cronologia, talvez tenha mostrado que eu tinha ideia de que essa era, em suma, a melhor maneira de fazer uma introdução a meus Escritos”. Lacan, J. O seminário XVIII: de um discurso que não fosse semblante. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2009, pp. 90-1.
3Bush, V. As we may think. Atlantic Monthly, v.176, 1945, p.101-108, Disponível em: https://www.theatlantic.com/past/docs/unbound/flashbks/computer/bushf.htm
4Wiener, N. Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina. São Paulo: Perspectiva, 2017.
5Shannon, C; Weaver, W. A mathematical theory of communication. Em: The Bell System Technical Journal. 1949.
6Jakobson, R. Seis lições sobre o som e o sentido. Lisboa: Moraes, 1977.
7Jabobson, R; Lévi-Strauss, C. Correspondance (1942-1982). Paris: Seuil, 2018, p. 105.
8Ibidem, p. 115.
9Ibidem, p. 123.
10Cherry, E.; Halle, M.; Jakobson, R. Toward the Logical Description of Languages in Their Phonemic Aspect. Language, vol. 29, n. 1, 1953, pp. 34-46.
11Vale destacar que bits é uma medida de informação. Nesse caso, Jakobson querer dizer que em média 5,38 perguntas do tipo: o fonema é vocálico? “sim” ou “não”? É grave? “sim” ou “não”? É nasal? “sim ou não”? etc. são necessárias para o ouvinte do idioma russo conseguir distinguir entre dois fonemas que ouve.
12Em uma conferência sobre antropólogos e linguistas, em 1952, o Jakobson comenta: “No estudo da linguagem em ação, a Linguística tem sido solidamente escorada pelo impressionante desenvolvimento de duas disciplinas aparentadas, a teoria matemática da comunicação e a teoria da informação. As pesquisas dos engenheiros de comunicações não estavam no programa desta Conferência, mas é sintomático que a influência de C. E. Shannon e W. Weaver, de N. Wiener e R. M. Fano, ou do excelente grupo de Londres, seja encontrada praticamente em todos os trabalhos” Jakobson, R. A linguagem comum dos linguistas e dos antropólogos. Em: Linguística e comunicação, São Paulo: Cultrix, 2013, p. 18.
13Lévi-Strauss. Les mathématiques de l’homme. Em: Bulletin international des sciences sociales. vol. VI, n. 4, 1954, pp. 644.
14Jabobson, R; Lévi-Strauss, C. Correspondance (1942-1982). Paris: Seuil, 2018, pp. 154-156.
15Guilbaud, G. Pilotes, stratégies et joueurs: vers une théorie de la conduite humaine. Revue Internacionale de Sytémique. Vol. 2, n. 3, 1988, pp. 321-44.
16Schützenberger, M-P. A propos de la “Cybernétique” (mathematiques et psychologie). L’evolution Psychiatrique, n° IV, 1949, pp. 585-607.
17Lacan, J. O seminário II: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 226.
18Hagelbarger, D. SEER, A SEquence Extrapolating Robot. IRE Transactions on Electronic Computers, 1956, pp. 1-7.
19Shannon, C. A Mind-Reading (?) Machine. Bell Laboratories Memorandum, 1953.
20Matherat, P. Doublures et redoublements. Tsémah, 2013. Disponível em: Doublures et redoublements – Archives ouvertes de la Linguistique (hal.science).
21Marion, D. La méthode intellectuelle d’Edgar Poe. Paris: Les editions de minuit, 1952.
22Guilbaud, G. Pilotes, stratégies et joueurs: vers une théorie de la conduite humaine. Revue Internacionale de Sytémique. Vol. 2, n. 3, 1988, nota 23.
23Já mencionamos anteriormente que Guilbaud entrou em contato com o artigo de Lacan e o utilizou como contraponto à interpretação psicológica de Denis Marion do conto A carta roubada. No mesmo sentido, Riguet comenta em uma entrevista sobre o seu convívio com Lacan, ocorrido entre 1954 e 1958, como uma das primeiras atitudes do psicanalista francês foi lhe entregar uma cópia de Le temps logique. Ver em: Riguet, J. Une analyse indolore. Em: Le diable probablement, 2011.
24 Ginzburg, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Em: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das letras, 1989.
25Wiener, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1954.
26Oliveira, P. O conto policial e as origens da psicanálise. Psicol. clin. 2009, vol.21, n.1, 2009, pp.119-136.
27Lacan, J. Lettre à Rudolph Loewenstein. Em: Pas-Tout Lacan, p. 429.
28Ibidem, 433.