Psicanálise e Cibernética: ou comunicação e controle em humanos, animais e máquinas

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Assim como os policiais no conto A carta roubada, escrito por Edgar Allan Poe, que inspecionam em cada centímetro no apartamento do ministro sem conseguirem encontrar nada, pois o objeto buscado não se conforma com aquilo que já imaginavam encontrar, nós que acompanhamos o trabalho de Jacques Lacan ficamos tão preocupados em confirmar nossas próprias hipóteses sobre sua influência da linguística (Saussure, Jakobson e Benveniste) e da antropologia (Lévi-Strauss) ao ponto de simplesmente desconsiderarmos que “o mundo simbólico é o mundo da máquina”[1]. Certamente lemos seus textos e nos deparamos com suas várias referências e alusões, mas em seguida talvez tenhamos nos virados de costa com horror por não quer ou não poder admitir que o simbólico não é um atributo exclusivo do chamado ser humano.

É possível que um dos motivos que possa justificar o horror entre os leitores esteja vinculado aos velhos fantasmas do mecanismo e do determinismo, cujo assunto das máquinas se encontra fortemente relacionado no imaginário social. Porém, podemos extrair algumas lições menos precipitadas e entender melhor o interesse de Lacan em relação ao assunto, realizando uma breve incursão sobre os problemas levantados pela cibernética no contexto intelectual no qual o psicanalista francês estava inserido na década de 50.

A cibernética surgiu na segunda metade da década de 30, nos EUA, e sua origem decorreu das pesquisas realizadas pelo médico fisiologista Arturo Rosenblueth e pelo matemático Norbert Wiener, cujos trabalhos no MIT eram dedicados à modelagem de programas para computadores e ao projeto de redes elétricas. Na segunda guerra mundial, os esforços do trabalho em conjunto foram todos concentrados na produção de artilharia antiaérea com o objetivo de abater as aeronaves alemãs. A cibernética adquire notoriedade no meio intelectual francês apenas em 1948 com o lançamento do livro de Wiener intitulado como Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina[2].

O subtítulo do livro de Wiener oferece uma definição preliminar sobre o objeto de estudo reivindicado pela cibernética. Por um lado, seu estudo se dedica ao modo como seres vivos e máquinas trocam e recebem informações entre si mesmos, entre suas partes e com o meio externo. Ela também se preocupa com o modo como são estruturados os meios de comunicação, tal como ilustrado em circuitos e redes. Nesse sentido, dado o papel atribuído à informação na cibernética, podemos considerá-la como uma ciência irmã da Teoria da Informação desenvolvida por Claude Shannon no mesmo período na Inglaterra. Por outro lado, o campo da cibernética se dedica do estudo sobre os mecanismos usados por seres vivos e máquinas para se regularem, se reproduzirem e se transformarem com base nas informações recebidas e processadas. O conceito de retroação (feedback em inglês e boucler em francês) figura como componente central nos processos de controle por regulação autônoma realizada pelos organismos ou sistemas estudados na cibernética.

Wiener declara que o nome cibernética foi escolhido por causa do artigo Theory of Governors escrito por Clerk Maxwell, em 1868, considerado como o primeiro trabalho significativo sobre os reguladores de máquinas. A palavra governor (regulador) surgiu no idioma inglês como uma derivação latina da palavra grega χυβερνήτης (Kyberneter), cujo significado é timoneiro. Assim como o timoneiro de uma embarcação, os reguladores usados na arquitetura de máquinas desempenham o papel de receber e processar informações para, em seguida, realizar comandos que ajustam o funcionamento do sistema.

Uma outra acepção da palavra grega χυβερνήτης (Kyberneter) destacada por G-T Guilbaud, indica que sua utilização já aparece nos textos de Platão no sentido da arte de guiar uma embarcação, assim como de conduzir os homens em sociedade[3]. Ele ainda destaca que na obra Essai sur la philosophie des sciences escrita por André-Marie Ampère, em 1834, com o objetivo de classificar os saberes humanos, o nome cibernética se encontra incluído na categoria política para designar o estudo sobre os meios de governo. Portanto, antes da cibernética ser popularizada como área que versa sobre máquinas, seu interesse estava voltado aos seres humanos. Seguindo tal indicação, Louis Couffignal faz um uso mais genérico da palavra cibernética ao classificá-la como “arte de tornar a ação eficaz”[4].

A cibernética nasce no território constituído pelo cruzamento de diversas ciências e se desenvolve no trabalho colaborativo composto por matemáticos, engenheiros e neurologistas, no primeiro momento, e, posteriormente, por psicólogos, linguistas, sociólogos, antropólogos e psicanalistas. Para não ficarmos atordoados no caldeirão de referências e conseguirmos delimitar os primeiros resultados do que chamamos depois como cibernética, façamos uma pequena viagem histórica.

Um antecedente histórico da cibernética

No século XVII, Descartes dizia que os corpos dos seres vivos eram compostos por partes cujos componentes eram semelhantes aos relógios formados por roldanas, contrapesos, válvulas, tubos, etc., e Deus era o relojoeiro responsável pela interação perfeita de suas engrenagens. A base mecanicista para explicar o funcionamento dos corpos encontra seus princípios nas noções desenvolvidas no interior da física clássica, como causalidade e ação-relação. Todos os seres vivos são autômatos que funcionam de maneira mecânica ao respirar, comer, transar, etc, com exceção do homem visto que além de ser uma coisa extensa também é uma coisa pensante. Os homens não agem apenas segundo seus apetites porque são animados por uma substância chamada de alma. Por tanto, ao contrário das máquinas que operam de maneira rígida de acordo como foram programadas e os animais que agem segundo o modo como foram adestrados, o ser humano pode se adequar a novas situações e dar respostas diferentes por possuir uma faculdade intelectual.

No século XVIII, La Mettrie oferece uma outra resposta ao problema colocado por Descartes. Ele propõe que os homens e os animais não estão separados de forma qualitativa pela presença ou ausência de qualquer substância, mas simplesmente pela distinção quantitativa da organização da matéria de seus corpos. Homem e animal nasceram do mesmo barro cuja natureza apenas variou sua proporção, o que distingue ambos é que o primeiro possui um cérebro mais complexo e recebe educação ao longo da vida. Por tanto, no lugar do dualismo cartesiano, o pensamento lamettrista apresenta um monismo cuja capacidade intelectual do ser humano se reduz à matéria, o que faz da alma uma palavra vã em sua filosofia.

La Mettrie busca justificar com base no conhecimento adquirido como médico que o corpo constitui uma substância viva e sensível, cujas desregulações em qualquer uma de suas partes são compensadas com o acionamento de outras. A matéria corpórea reage quando estimulada de modo que o indivíduo com perda na visão terá sua audição apurada, outro que tenha problema de circulação sanguínea possuirá maior frequência cardíaca, um outro que esteja com febre produzirá mais suor, etc. “O corpo humano é uma máquina que compõe por si própria suas peças, viva imagem do movimento perpétuo”[5]. La Mettrie continua pensando o corpo como um relógio, mas dotado com uma sofisticação capaz de lhe garantir que se regule e se ajuste.

Não nos enganemos: o corpo humano é um relógio, embora imenso, construído com tanto artifício e habilidade que se a roldana que serve para marcar os segundos parar, a dos minutos gira e seguirá sempre o seu ritmo, da mesma forma que a das horas continuará se movendo; e assim ocorrerá com as outras roldanas, quando as anteriores enferrujarem ou estragarem por qualquer motivo, quando pararem de se mover.[6]

Descartes e La Mettrie permaneceram presos no mesmo quadro conceitual responsável por fazer com que concebessem o corpo humano como um relógio, mas há um abismo que separa ambos. Enquanto o primeiro só pôde conceber os corpos como coisa extensa submetida aos mesmos princípios da mecânica clássica que governam o movimento determinístico dos planetas, o segundo fez da matéria corpórea uma substância viva e dinâmica capaz de se autorregular. Mais próximo de ciências naturais como anatomia e fisiologia, ao invés das matemáticas como ocorreu com Descartes, La Mettrie imagina o corpo como um relógio que não necessita que lhe deem corda, já que consiste em uma máquina cuja programação depende de si mesma.

Em paralelo aos debates levantados entre os seguidores da filosofia de Descartes e La Mettrie sobre homens, animais e máquinas, os autômatos que simulavam seres vivos eram exibidos nos palácios para diversão de aristocratas, cortesões e monarcas europeus. Nesse período, os relojoeiros e artesões se voltaram à criação de caixas de música com personagens animados e autômatos com aparência humana. Jacques de Vaucanson construiu, em 1736, um flautista em tamanho natural após combinar o conhecimento com relógios e o estudo em fisiologia humana, em que três foles reproduziam os pulmões, uma válvula localizada na cavidade bucal exercia o papel da língua, um conjunto de engrenagens moviam os lábios e os dedos eram revestidos com couro para fechar os orifícios da flauta e evitar o vazamento de ar. Pouco tempo depois, Pierre ficou conhecido por construir autômatos capazes de escrever, desenhar e tocar, cujo o mais famoso, criado em 1774, possuía o tamanho de uma criança e conseguia mover os olhos enquanto escrevia em uma folha de papel colocado à sua frente. Este autômato era composto por mais de 6000 peças móveis cujas interações reproduziam o papel da memória na execução de movimentos e era capaz de ser reprogramado para escrever qualquer texto com quarenta caracteres.

O escritor,por Jacquet-Droz
L’écrivain, por Jacquet-Droz

Embora os relojoeiros e artesões que viveram no século XVIII tivessem concentrado seus esforços para construir autômatos semelhantes aos seres humanos, o empenho não conseguiu ir além da simples aparência física. As máquinas criadas na época funcionavam de maneira bastante rígida com um comando que era fixado de maneira prévia e com movimentos que eram reproduzidos sempre de maneira idêntica, independente das circunstâncias e sem qualquer interação com o meio externo. O movimento observado na dança dos planetas sobre os céus desce e se encarna na figura de autômato na Terra.

Os sistemas morfostáticos

Nas duas primeiras revoluções industriais observamos mais do que simplesmente a substituição do trabalho que antes era realizado por força animal pelo trabalho exercido por máquinas. Neste período, foi escrito outro capítulo na história da zoologia das máquinas ao passarmos dos autômatos rígidos às máquinas autorreguladas.

O regulador centrífugo de Watt representa um dos primeiros sistemas de controle automático que foram incorporados nas máquinas, como, por exemplo, no sistema de controle de velocidade em locomotivas. À medida em que ocorre o aumento da rotação do motor, graças ao vapor gerado na caldeira, também cresce o número de rotações no eixo (D) fazendo com que as massas (E) sejam erguidas através da força centrífuga. As massas erguidas fazem com que o ponto (F) seja contraído, ocasionando o fechamento da válvula (Z) e, consequentemente, a suspensão da energia fornecida ao motor. O objetivo do regulador de Watt consiste em manter quase constante o desempenho da máquina, fazendo com que seja cortado o fluxo de alimentação, em caso de aumento na velocidade, ou liberado o fluxo de alimentação, em caso de diminuição na velocidade da locomotiva.

Regulador de Watts
Regulador de Watts

Embora os primeiros dispositivos de autorregulação acoplados em máquinas sejam ainda bastante simples, o sistema de controle usado se distingue consideravelmente do mecanismo rígido presente nos autômatos criados no século XVIII. Se fizéssemos uso das metáforas náuticas que são utilizadas pelos ciberneticistas, poderíamos dizer que os autômatos possuem apenas o capitão que estabelece o comando e os remadores que empregam sua força para executá-lo. No caso da locomotiva, por outro lado, precisaríamos contar também com o piloto que detecta os desvios causados pelas adversidades da maré e do vento e, em seguida, compara os desvios encontrados com o itinerário fixado anteriormente pelo capitão; e o timoneiro que decide mudar o sentido do leme, segundo o tipo de mensagem recebida. Neste caso, podemos observar que o papel do capitão se coloca em segundo plano em relação ao conjunto de mensagens que são trocadas entre o mundo externo, o piloto e o timoneiro. Em cibernética, são chamados de servomecanismos os dispositivos que são responsáveis por detectar e comparar mensagens e enviar comandos, com o objetivo de garantir o controle autônomo em máquinas.

Diagrama represetando o circuito da mensagem
Diagrama do circuito da mensagem

A mensagem circula entre os órgãos da máquina de modo que o comando enviado ao motor resulta em uma ação sobre o meio externo, em seguida, os resultados da ação são novamente introduzidos e incluídos como uma nova mensagem que será responsável por modificar o comportamento anterior. O mecanismo de retroação (feedback em inglês e boucler em francês) garante que o comportamento posterior responda corrigindo e modificando o comportamento anterior. Neste tipo de máquina, o anel de retorno não funciona como um dispositivo linear de causa-efeito, mas como um dispositivo circular cujo efeito age posteriormente como causa ou informação de saída se torna na sequência informação de entrada[7]. O regulador de Watt segue o princípio geral encontrado nos processos homeostáticos dos seres vivos, cuja existência se mantém preservada graças aos processos de regulação no nível de oxigênio e pH no sague, na temperatura corpórea, na pressão arterial, na frequência cardíaca, etc.

Durante uma viagem de trem para Berlim em 1895, o médico Sigmund Freud começa a redigir um pequeno manuscrito com o objetivo de expor ao seu amigo Wilhelm Flieβ suas primeiras especulações sobre o que chamou com o sugestivo nome de aparelho psíquico[8]. O propósito é declarado desde o início, o fundador da psicanálise buscava fornecer uma psicologia científica e naturalista, livre de noções como alma ou espírito, cujos processos psíquicos fossem expressos somente de maneira qualitativa e materialista de acordo com forças que interagem entre si.

No primeiro momento, o aparelho psíquico interage com grandes fluxos de massa em movimento (Q), cujos impactos são amortecidos pelos órgãos do sentido. A interação do organismo com tais quantidades externas resulta na formação de um sistema de proteção especializado chamado de phi. Por outro lado, o organismo se encontra exposto sem proteção aos estímulos gerados pelas necessidades básicas no interior do próprio corpo, como respiração, fome e sexualidade. O acúmulo excessivo das quantidades internas (Qn’) provoca uma experiência de desprazer, cuja redução depende que seja realizada uma ação específica sobre o mundo externo (respirar, comer, transar). A ação específica reduz o nível de quantidades internas, gerando, por sua vez, uma experiência de prazer. Todo o complexo de informação que foi formado pelo aumento no estado de tensão e o modo como conseguiu ser apaziguado, registra-se no sistema psi como caminhos que deverão ser sempre repetidos quando o mesmo estado ressurgir. Este sistema que armazena informação na forma de vias de facilitação desempenha o papel de memória.

A tendência espontânea do aparelho psíquico consiste em percorrer de maneira alucinatória o circuito da experiência de prazer sempre que o estado de tensão ressurgir, contudo, o mecanismo não consegue dar conta do rebaixamento das quantidades porque o objeto inscrito e reproduzido na memória não se encontra na realidade externa. Por isso, é necessário que exista o sistema ômega, encarregado da função percepção-consciência, para certificar que o objeto realmente se encontra no mundo externo e não apenas na repetição automática da experiência passada. Nesse caso, podemos acrescentar que o aparelho psíquico descrito por Freud, além de possuir um órgão de armazenamento de informação, também inclui consigo outro órgão capaz de detectar e comparar informações e, em seguida, enviar comandos para serem executados[9].

Freud chamou o mecanismo de controle que regula o funcionamento do aparelho psíquico, fazendo com que evite o desprazer e busque o prazer, de princípio de constâncias, posteriormente rebatizado simplesmente como princípio do prazer. Esse mecanismo obedece ao mesmo princípio de autorregulação encontrado nos seres vivos e nos dispositivos de controle usados em locomotiva com o objetivo de corrigir os desvios e manter o organismo em equilíbrio. Em cibernética, os sistemas que buscam atingir estabilidade são chamados de morfostáticos, mas é necessário recordar que também existem sistemas dinâmicos chamados de morfogêneticos[10]. Para elucidar os chamados sistema morfogêneticos, teremos que passar da locomotiva ao míssil teleguiado ou bateria antiaérea e da psicanálise de Freud precisaremos ir à psicanálise de Lacan. 

Os sistemas morfogêneticos

Nos séculos XVIII e XIX ocorreu o rápido processo de substituição do trabalho que antes era realizado por tração animal e operações manuais realizadas por humanos no setor industrial pelo trabalho executado por máquinas automáticas e autorreguladas. Na segunda metade do século XX, Lacan comenta que “o sentido da máquina, para todos vocês, está mudando agora completamente, quer tenham aberto um livro de cibernética ou não”[11]. A preocupação e o esforço do francês era destacar ao seu auditório composto por psicanalistas que, naquele período, outro capítulo na história da zoologia das máquinas estava ocorrendo graças ao surgimento de invenções como mísseis teleguiados, baterias antiaéreas e computadores modernos, todas desenvolvidas no contexto da segunda guerra mundial, e capazes de resolver problemas lógicos, elaborar estratégias e tomar decisões, em suma, como alguns diziam na época, incluindo Lacan, entrávamos na época das máquinas pensantes.

Nobert Wiener abre seu livro de divulgação ao grande público da nova disciplina cibernética, ressaltando que o sucesso da física newtoniana impulsionou em diversas ciências o desenvolvimento de modelos baseados no movimento planetário, constituídos por leis rígidas e imutáveis cujo comportamento passado se repete de maneira invariável no futuro. Contudo, o autor faz questão de destacar que o modelo determinístico usualmente utilizado também encontrou seu limite em relação aos fenômenos complexos, como, por exemplo, o movimento browniano, cuja trajetória de uma partícula em determinado fluído ocorre de forma quase aleatória e sem padrão aparente. Assim como o movimento browniano, outros fenômenos físicos não poderiam ser explicados de maneira exaustiva e precisavam ser analisados levando em consideração eventos contingentes e certo nível de incerteza. Ele conclui que estas caraterísticas fizeram da probabilidade um componente imprescindível na física desenvolvida por Bolzmann, Gibbs, Planck, Heisenberg, entre outros

A atenção especial da cibernética encontra-se voltada aos organismos, sejam apenas intuídos ou efetivamente construídos, que estão envolvidos em processos que são não-determinísticos, mas que podem ser analisados de acordo com séries probabilísticas. Os processos estocásticos, como são chamados, podem ser comparados com sucessivos lançamentos de moedas ou dados não viciados. Na engenharia envolvida na construção de mísseis teleguiados, por exemplo, é necessário levar em consideração que sua eficácia em atingir o alvo será influenciada por fatores contingentes encontrados durante o percurso, como velocidade do vento, pressão atmosférica e deslocamento do alvo. No caso de baterias antiaéreas, além de influências da natureza, será necessário levar em consideração possíveis manobras evasivas do adversário e conseguir predizer em qual posição o alvo se encontrará no futuro. Em ambos contextos, trata-se de situações em que o acaso precisa ser considerado e incluído nas operações realizadas. Estas perturbações contingentes também recebem o nome de ruído nas pesquisas desenvolvidas pelos engenheiros de telecomunicação.

As perturbações que ocasionalmente interagem com o organismo da máquina na forma de ruído inviabilizam que seu comportamento seja regido de maneira fixa, como ocorria com os primeiros autômatos. As ações contingentes que recebe do meio externo são armazenadas como dados que permitem estimar em termos probabilísticos suas reações subsequentes e planejar o conjunto das respostas que são possíveis de serem oferecidas. Essas perturbações exigem que o organismo da máquina seja dinâmico e consiga fornecer uma diversidade de estados e transições possíveis, ao invés de dispor de uma única possibilidade de trajetória linear. Nesse sentido, como o exemplo evocado há pouco, o míssil terá à sua disposição uma variedade de escolhas possíveis e precisará planejar estratégias e decidir sem interferência do agente humano qual atenderá melhor o seu objetivo[12].

Diagrama representando as possibilidades de escolhas possíveis
Diagrama das possibilidades de escolhas possíveis

A programação usada em mísseis e baterias antiaéreas precisa ser altamente flexível para garantir que sejam eficazes em suas respectivas execuções. Os ruídos recebidos do meio externo são integrados ao programa inicial e processados pelo organismo com o auxílio de vários e contínuos anéis de retorno, de modo que seu comportamento precise ser dinâmico e suscetível de transformações para conseguir assimilá-los. Os seres vivos que não conseguem compensar os desvios impostos pelo ambiente, por meio de processos homeostáticos, acabam morrendo ou sendo extintos, mas, em alguns casos, os mesmos desvios também podem forçar mudanças de patamar e alterações no sistema. Os sistemas que são capazes de metabolizar os ruídos e se autotransformar são chamados de morfogenéticos.

Infelizmente, somente uma pequena fração dos psicanalistas que acompanham os trabalhos de Lacan conseguiram observar que o autor não estava interessado em colocar o campo da psicanálise sobre o domínio das chamadas ciências exatas, pois seu interesse estava voltado ao domínio das ciências conjecturais. Este ramo das ciências possui como foco os problemas que envolvem níveis de acaso e de incerteza, dependem da elaboração de certo conjunto de respostas possíveis e necessitam da construção de estratégias, cujo antecedente histórico remonta desde o pensamento de Pascal sobre teoria probabilística em jogos. Essa chave de leitura condiz com o interesse de Lacan em fazer da associação livre um processo estocástico e do inconsciente uma cadeia de Markov, cujo estado atual exerce influência no estado subsequente sem ser determinístico[13]. Isso também explica porque Lacan precisou se servir de uma expressão como sujeito, tão carregada em seu passado filosófico, para sublinhar que existem pensamentos perfeitamente articulados e capazes de elaborar estratégias, mas que independem da cognição de qualquer indivíduo.

Também sabemos do interesse de Lacan nos trabalhos de Karl von Frisch acerca da comunicação entre abelhas, cujas danças durante o voo servem como mensagens que são trocadas e que somente podem variar entre o formato circular ou o formato em oito com o objetivo de indicar que o alimento se encontra próximo ou afastado, respectivamente[14]. A comunicação realizada entre seres humanos se distingue na medida em que o código da mensagem trocada entre abelhas possui o conteúdo fixo e limitado por duas alternativas possíveis. Neste ponto precisamos acrescentar também que “a máquina é muito mais livre do que o animal. O animal é uma máquina bloqueada. É uma máquina da qual certos parâmetros não podem mais variar”[15]. As abelhas podem ser consideradas como máquinas emperradas porque o código da mensagem trocada com o mundo externo e com os demais membros da colmeia não pode se diversificar e oferecer mais opções de escolha.

Os mísseis teleguiados são diferentes das abelhas na medida em que o padrão de sua programação inicial consegue metabolizar os ruídos que são encontrados durante o voo e possibilita que trajetórias alternativas sejam fornecidas. Este raciocínio resulta na seguinte conclusão: “é na medida em que, em relação ao animal, somos máquinas, ou seja, algo decomposto, que manifestamos uma maior liberdade, no sentido em que liberdade quer dizer multiplicidade de escolhas possíveis”[16]. Os mísseis teleguiados estão aptos a se diversificarem e disporem de opções de escolhas possíveis para basear suas decisões, nesse sentido, são tão livres quanto os seres humanos.

Uma revolução industrial separou Freud e Lacan. Enquanto o fundador da psicanálise só pôde pensar em termos energéticos, outro quadro conceitual tornou possível que o psicanalista francês pensasse em termos de informação (ou linguagem, caso prefiram)[17]. Da mesma forma, enquanto o primeiro conviveu com máquinas que eram capazes somente de retornar ao padrão estabelecido e garantir o equilíbrio interno, o segundo atravessou uma guerra mundial e ouviu pelo rádio sobre o surgimento do míssil V-2 dos alemães e das baterias antiaéreas dos aliados, capazes de alterar o padrão, criar estratégias e tomar decisões de acordo com as mudanças climáticas e os movimentos do inimigo. Por essas razões, os capítulos na história da zoologia das máquinas parecem quase se sobreporem aos próprios capítulos na história da psicanálise.


[1] LACAN, J. Le séminaire II. Lição de 8 de dezembro de 1954. Disponível em: http://staferla.free.fr/, p. 32.

[2] WIENER, N. Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina. São Paulo: Perspectiva, 2017.

[3] É importante destacar que o matemático G-T Guilbaud publica o livro “La Cybernétique” na coleção “Que sais-je”, em 1954, no mesmo ano em que Lacan consagra seu seminário ao estudo da cibernética. Essa referência aos textos de Platão talvez possa justificar o interesse despertado em Lacan para comentar o texto Mênon no mesmo ano, infelizmente, tal hipótese leitura ainda não foi testada por nenhum de seus leitores.

[4] COUFFIGNAL, L. A cibernética. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1966, p. 24.

[5] La Mettrie, J. Homem-máquina. Em: Obra filosófica. Madri: Nacional, 1983, p. 212.

[6] Ibidem, p. 244.

[7] Em seguida, observados outros tipos de máquinas, teremos a oportunidade de se desfazer da imagem do círculo vicioso.

[8] FREUD, S. Projeto de uma psicologia científica. Em: GABBI JR, O. Notas a projeto de uma psicologia: as origens utilitaristas da psicanálise. Rio de Janeiro: Imago, 2003.

[9] Kittler destaca que Freud e Lacan se distinguem porque o primeiro participou de um período na história das mídias pautado em processos de transmissão (telefone e rádio) e armazenamento de informação (gramofone), enquanto o segundo pôde pensar em termos de processamento de dados (computadores modernos), haveria de precisar o que o autor chama de processamento de dados, mas, em todo caso, é necessário observar que o funcionamento do aparelho psíquico freudiano se tornaria inviável caso não houvesse recebimento e posterior análise das informações fornecidos pelo mundo externo. Ver em: KITTLER, F. Gramofone, Filme e Typewriter. Belo Horizonte, UFMG, 2019.

[10] EPSTEIN, I. Cibernética. São Paulo, Ática, 1986.

[11] LACAN, J. O seminário II: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Lição de 1 de dezembro de 1954. Rio de Janeiro: Zahar, p. 47.

[12] A palavra estratégia não surge de maneira fortuita no texto, buscamos recordar ao leitor sobre o papel de John von Neumann, criador da Teoria dos Jogos junto com Oskar Morgenstern, na modelagem dos primeiros computadores modernos.

[13] Lacan, J. O seminário sobre A carta roubada. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.

[14] Lacan, J. Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998. É possível que Lacan tenha mostrado interesse pelo trabalho Karl von Frisch por causa do artigo de Benveniste publicado no ano anterior ao congresso de Roma, ver em: BENVENISTE, É. Comunicação animal e linguagem humana. Em: Problemas de linguística geral, vol 1. Campinas: UNICAMP, 1991. 

[15] LACAN, J. O seminário II: o eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise. Lição de 1 de dezembro de 1954. Rio de Janeiro: Zahar, p. 46.

[16] Idem.

[17] A distinção entre energia e informação se apresenta de maneira bastante clara para Wiener quando afirma que “informação é informação e não é matéria ou energia” (p. 162). Portanto, precisamos considerar que no mundo existe matéria, energia e outro componente chamado de informação; com este último, o autor busca superar os impasses criados entre vitalistas e materialistas.  Ver em: Em: WIENER, N. Cibernética: ou controle e comunicação no animal e na máquina. São Paulo: Perspectiva, 2017.

2 comentários em “Psicanálise e Cibernética: ou comunicação e controle em humanos, animais e máquinas”

  1. Muito bom Hudson, um trabalho de pesquisa amplo e cheguei de referências. Pensei uma série de coisas e vou te chamar para falarmos das cadeias de Markov, Ruídos, onde colocar Matriz nesse contexto, etc… 🙂

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  2. Hudson. Muito bom o retrospecto abrangente. Duas terminologias que merecem estudos: 1. a cadeia de Markow, Lacan foi lacônico. Algo a pesquisar. 2. Sobre as ciências conjecturais, não seria uma categorização ou nova classificação proposta pelo próprio Lacan?

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