As matemáticas do Homem – por Claude Lévi-Strauss

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Na história da ciência tudo se passa como se o homem tivesse percebido muito cedo o programa de suas pesquisas e, uma vez fixado, tivesse que passar séculos esperando para ser capaz de cumpri-lo. No início da reflexão científica, os filósofos gregos colocaram para si problemas físicos em termos de átomos; vinte e cinco séculos mais tarde, e sem dúvida de uma maneira que não esperávamos, começamos a trabalhar sob o molde que outrora fora traçado. O mesmo ocorre no contexto de aplicação das matemáticas aos problemas humanos; pois, era para o homem, muito mais do que para mundo físico, que se voltavam as especulações dos primeiros geômetras e aritméticos. Pitágoras estava profundamente penetrado no significado antropológico dos números e das figuras; Platão permaneceu imbuído nas mesmas preocupações.

Nos últimos dez anos, mais ou menos, essas meditações antigas encontram um novo alento na atualidade. Isso deve ser destacado imediatamente, porque os desenvolvimentos aos quais o presente número do Bulletin international des sciences sociales espera oferecer uma modesta contribuição, não é nada particular às ciências sociais. Ela se encontra nas ciências ditas humanas (se é que se pode distingui estas daquelas); acrescentaria: talvez seja nas ciências humanas que a evolução mais sensacional se manifestou primeiro. Talvez porque essas ciências pareçam, à primeira vista, serem as mais afastadas de toda a noção de rigor e medida; mas sem dúvida também em razão do caráter essencialmente qualitativo de seu objeto, que lhes impediriam de agarra, como as ciências sociais fizeram durante tanto tempo, o fio das matemáticas tradicionais e que lhes impuseram, ao contrário, virar suas costas às formas audaciosas e inovadores das reflexões matemáticas.

É no domínio linguístico que podemos acompanhar melhor as etapas dessa evolução e perceber seu caráter fundamental. Do ponto de vista que nos interessa aqui, a linguística ocupa uma posição privilegiada: por um lado, ela é classificada entre as ciências humanas; por outro, seu objeto é um fato social: pois a linguagem não implica apenas a vida em sociedade, ela a funda; o que seria uma sociedade sem linguagem? Enfim, a linguagem constitui o mais perfeito e o mais complexo dos sistemas de comunicação em que consiste toda a vida social e que todas as ciências sociais – cada uma em seu nível particular – se propõem a estudar.

Portanto, podemos dizer que qualquer transformação que ocorra na linguística oferece um valor tópico, tanto às ciências sociais quanto às ciências humanas. Entre 1870 e 1920, duas ideias fundamentais foram introduzidas nesse campo, primeiro sob influência do russo Beaudoin de Courtenay e depois do suíço Saussure: por um lado, a linguagem é constituída por elementos descontínuos, os fonemas; por outro, a análise linguística permite entender os sistemas, ou seja, conjuntos regidos por uma lei de coerência interna e cuja mudança em uma de suas partes acarreta necessariamente mudanças em outras que são passíveis de serem previstas. Nós sabemos como, através do pensamento do russo Troubetzkoy[2] e o trabalho internacional de seus sucessores (Jakobson, Benveniste, Sapir, Bloomfield, Hjelmslev, Sommerfelt e muitos outros), esses princípios deveriam dar origem à linguística estrutural. Esses princípios se fundam no caráter descontínuo dos elementos microscópicos da língua, os fonemas (é necessário, evidentemente, atribuir esta definição aos gramáticos indianos da Idade Média), primeiro para identificá-los e depois para determinar as leis de coexistência reciprocidade. Essas leis apresentam um grau de rigor inteiramente comparável às leis de correlação encontradas nas ciências exatas e naturais.

No entanto, pesquisas realizadas de forma independente em laboratório pelos engenheiros de transmissão conduziriam, por volta de 1940, para conceitos muito semelhantes. Dessa maneira, tanto na realização de aparelhos que sintetizam a fala, como o famoso Voder, ancestral de toda uma linhagem de dispositivos mais aperfeiçoados, quanto na postulação teórica dos métodos intelectuais que regem os trabalhos dos especialistas em comunicação (apresentado pela primeira vez de maneira sistemática pelo engenheiro e matemático Claude Shannon[3]), encontramos alguns grandes princípios de interpretação que são precisamente aqueles que a teoria linguística tinha conseguido formular: ou seja, a comunicação entre os homens repousa na combinação de elementos ordenados; as possibilidades de combinações são regidas, em cada língua, por um conjunto de compatibilidades e incompatibilidades; finalmente, a liberdade do discurso, assim como é definida no interior dos limites de tais regras, encontra-se vinculada no tempo segundo certas probabilidades. Dessa forma, por uma conjunção que permanecerá memorável, a famosa distinção saussuriana entre linguagem e fala coincide com as duas grandes orientações do pensamento físico contemporâneo: por um lado, a linguagem baseada nas interpretações mecanicistas e estruturais; por outro, a fala, apesar de seu traço aparentemente imprevisível, livre e espontâneo (ou talvez por causa dele), cede lugar ao cálculo de probabilidades. Pela primeira vez na história das ciências humanas, torna-se possível, como nas ciências exatas e naturais, construir experimentos em laboratório e verificar empiricamente hipóteses.

Por outro lado, Saussure tinha introduzido uma comparação entre a linguagem e certos jogos de estratégia como o xadrez. Essa assimilação da linguagem como um tipo de jogo combinatório, na qual já aludimos, permitia à linguística se afirmar imediatamente como Teoria dos Jogos, tal como foi formulada, em 1944, por J. von Neumann e O. Morgenstern[4]. No entanto, como o próprio título do livro indica, a teoria dos jogos foi publicada por seus autores como uma contribuição às ciências econômicas. Esse encontro inesperado entre as ciências ditas humanas e uma outra considerada mais social, coloca, portanto, em evidência o caráter fundamental da comunicação, que constitui a comunicação linguística, e as trocas de bens e serviços, que é o objeto da ciência econômica; relevando agora que, aplicando um mesmo formalismo, ambos [comunicação linguística e trocas de bens e serviços] começam a parecer como fenômenos do mesmo tipo.

Por fim, sendo o estado do discurso, em cada instante, comandado pelos estados imediatamente anteriores, a linguagem também se enquadra nessa teoria das autorregulações [servo-mécanismes], completamente penetrada por considerações biológicas, que ficou famosa com o nome de Cibernética[5]. Portanto, no espaço de alguns anos, especialistas tão distantes uns aos outros como os biólogos, os linguistas, os economistas, os sociólogos, os psicólogos, os engenheiros de comunicação e os matemáticos se encontraram subitamente lado a lado e de posse de um formidável aparato conceitual cujas descobertas progressivas compõem uma linguagem comum.

No mais, devemos sublinham que a evolução, cujas etapas acabamos de traçar brevemente, prossegue. Após o encontro entre linguistas e engenheiros no terreno da fonologia, ou seja, novamente na infraestrutura da linguagem, um novo desenvolvimento independente está conduzindo os primeiros para uma formalização mais rigorosa dos problemas de gramática e vocabulário, enquanto que o problema técnico das “máquinas de tradução” impõe aos segundos preocupações do mesmo tipo. Há alguns anos, o estatístico inglês Yule apresentou um método matemático à crítica de texto[6]. Hoje, são certos círculos religiosos, embora tradicionalmente resistentes contra todas as tentativas de reduzir o homem a puros mecanismos, que não hesitam em usar métodos matemáticos em apoio ao estudo crítico dos textos evangélicos. Um congresso internacional recente, realizado por filólogos na Inglaterra ao longo do verão de 1954, sublinhou a crescente importância das preocupações matemáticas na filologia, crítica literária e estilística. Certos indícios apontam que a história da arte e a estética (que, aliás, muitas vezes e durante séculos, acalentou o sonho) não estão longe de enveredar pelo mesmo caminho.

Quando os cientistas sociais se expõem as aventuras matemáticas, eles podem, portanto, encontrar um conforto e um ânimo na certeza de que não estão sozinhos em correr tais riscos. Na verdade, eles são carregados por um imenso impulso cuja origem lhes é externa. Pois, como notou M. Festinger ao final de seu artigo, encontrado mais abaixo nesse mesmo número do Bulletin; se tantos cientistas sociais manifestam sua fé nos métodos matemáticos hoje, é, ao menos, por causa dos resultados que eles próprios obtiveram graças à imensa ajuda fornecida pela matemática em outros domínios, notadamente nas ciências físicas.

Contudo, é necessário evitar certas confusões e circunscrever melhor a originalidade da aproximação de que somos testemunhas depois de alguns anos.

Os cientistas sociais certamente não esperaram pelos últimos dez anos para perceberem que a ciência só se tornou verdadeiramente como tal depois que conseguiu formular um encadeamento rigoroso de preposições e que as matemáticas passaram a constituir a linguagem mais apta para obter este resultado. Há muito tempo que a psicologia, a economia e a demografia recorrem ao raciocínio matemático. E, se é verdade que, no caso da primeira dessas três disciplinas, as aplicações matemáticas permaneceram limitadas à psicotécnica e à psicologia experimental (e, mesmo aqui, sempre sujeitas a críticas), podemos dizer que, para as outras duas, a aspiração ao rigor matemático e ao uso de métodos matemáticos são contemporâneos ao seu nascimento e se desenvolveram ao mesmo tempo que elas. Deveríamos concluir que a novidade se reduz à extensão de novas disciplinas – sociologia, psicologia social, antropologia – para os processos há muito usados em outros lugares? Isso seria ignorar completamente a revolução em curso.

Se, há cinquenta anos ao menos (e mais no que diz respeito à economia e à demografia), as ciências sociais recorrem às matemáticas, é sempre com a mesma preocupação quantitativa. Para elas, trata-se de medir grandezas que, em seus domínios específicos, eram suscetíveis desse tipo de tratamento: número da população, recursos econômicos, massa de salários, etc. Quando, como ocorreu na psicologia, as realidades observadas não pareciam apresentar imediatamente um caráter quantitativo, procedeu-se indiretamente tentando identificar, por meio de uma escala quantitativa criada para as necessidades do caso, variações incomuns cujo aspecto qualitativo era diretamente percebido: assim, os métodos visavam reduzir as diferentes manifestações de inteligência a valores numéricos em uma escala de Q.I. Todo o esforço de matematização se reduzia, assim, a dois tipos de operações: por um lado, extrair das observações seus aspectos qualitativos, e, por outro, medir com o máximo de precisão.

Essa dupla ambição é perfeitamente legítima quando os fatos observados apresentam efetivamente um caráter quantitativo e quando é do aspecto quantitativo que se pretende tirar os ensinamentos. Não há dúvida de que a demografia e a ciência econômica encontram, na aplicação de tais métodos, sua maior justificativa. Queremos saber sobre os dados quantitativos relativos à evolução numérica da população, o aumento ou a redução de seus recursos, etc., e não há qualquer razão para supor que no futuro as disciplinas mencionadas acima não continuarão realizando de maneira muito válida análises desse tipo.

Porém, mesmo nesse terreno limitado surgem dificuldades. Para abstrair os aspectos puramente quantitativos dos fenômenos populacionais, os demógrafos são obrigados a empobrecê-los. As populações que tratam têm apenas uma relação remota com as populações reais; são compostos de indivíduos assexuados aos quais se confere indiscriminadamente a capacidade de reprodução: a consideração dos casais complicaria muito o problema de início. As sociedades do demógrafo são tomadas como totalidades artificialmente homogéneas, são ignorados os traços mais fundamentais de sua estrutura, de modo que sempre que é possível a observação global de uma sociedade (como nos estudos etnográficos, devido as pequenas dimensões dos grupos habitualmente considerados), o comportamento real da população se ajusta muito pouco aos modelos abstratos dos demógrafos. Esses modelos só encontram seu valor se colocados em uma escala muito ampla.

Os economistas encontram dificuldades da mesma ordem. Eles também, para poderem realizar um tratamento qualitativo, empobrecer, negligenciar e deformar. Mesmo assim, isso não sempre é fácil: nos estudos econômicos que figuram neste número do Bulletin, notamos o apelo para um fator exógeno cuja intervenção pode, em cada momento, perturbar a ordem de grandeza e a natureza das previsões. Ora, esse fator exógeno é precisamente tudo aquilo que o economista se obrigou a ignorar ou rejeitar nos fatos observados para poder tratá-los como quantidades. Por outro lado – e este é um segundo aspecto do problema – as extrapolações as quais os economistas se entregam só podem basear-se em longas séries de observações. No entanto, como o próprio economista aponta na presente edição[7], as séries que dispõe o economista possuem sempre um caráter histórico. Portanto, encontramo-nos presos em um dilema: ou estendemos a série, cujos elementos se tornam cada vez menos comparáveis; ou restringimos a série para salvar sua homogeneidade interna, ao custo de um aumento concomitante na margem de incerteza das previsões. Ganhamos em significado, o que perdemos em precisão de medição, e vice-versa.

Tocamos aqui em uma dificuldade essencial de medição nas ciências humanas e sociais. Sem dúvida, há muitas coisas em nossas disciplinas que podem ser medidas, de formar direta ou indireta; mas não é absolutamente certo que isso seja o mais importante. Nesse grande obstáculo, a psicologia experimental tropeçou há anos: ela mediu, por assim dizer, a torto e a direito. Mas, enquanto nas ciências físicas a experiência provaria que o progresso da mensuração era diretamente proporcional ao do conhecimento, na psicologia, ao contrário, notamos que eram as coisas menos interessantes que se mensuravam melhor e a quantificação dos fenômenos psicológicos não andou de mãos dadas com a descoberta de seu significado. Isso resultou em uma crise aguda na chamada psicologia “científica”; e acabamos de ver em menor grau, sem dúvida, que a antinomia está presente nas outras disciplinas que há muito tempo aspiram para um rigor científico do tipo matemático.

Disso, devemos concluir que entre, por um lado, as ciências exatas e naturais, e, por outro, as ciências humanas e sociais, existem diferenças tão profundas, tão irredutíveis, que devemos perder toda a esperança de estender ao segundo grupo os métodos rigorosos que asseguraram o triunfo do primeiro? Esta atitude (como aquela de F. A. von Hayek[8]) nos parece manchada por um verdadeiro obscurantismo, tomando o termo em seu sentido etimológico: obscurecer o problema ao invés de esclarecê-lo. O que pode aproximar os psicólogos experimentais do início desse século, dos economistas e dos demógrafos tradicionais, certamente não é por ter olhado muito às matemáticas, mas por não ter feito suficientemente: ter-se limitado a tomar emprestado os métodos quantitativos que possuem, nas próprias matemáticas, um carácter tradicional e largamente ultrapassado; e não ter visto o nascimento de novas matemáticas, em plena expansão na atualidade – matemáticas que quase poderia ser chamadas de “qualitativas”, por mais paradoxal que o termo possa parecer, pois, agora, elas introduziram a independência entre a noção de rigor e aquela de mensuração. Com essas novas matemáticas (que, aliás, só fundamenta e desenvolve velhas especulações), aprendemos que o reino da necessidade não se confunde inevitavelmente com o da quantidade.

Para o autor dessas linhas, essa distinção apareceu claramente em circunstâncias que talvez lhe seja permitido recordar aqui. Por volta do anos de 1944, quando me convencia progressivamente de que as regras do casamento e da filiação não eram, como regras de comunicação, fundamentalmente diferentes das regras que prevaleciam na linguística, e que, portanto, deveria ser possível lhes dar um tratamento rigoroso, os matemáticos experiente aos quais me dirigi no começo receberam esse pensamento com desdém: o casamento, eles diziam, não poderia ser assimilado nem a uma adição nem a uma multiplicação (menos ainda a uma subtração ou a uma divisão) e, portanto, é impossível lhe dar uma formulação matemática. Isso durou até o dia em que um dos jovens mestres da nova escola, tomado pelo problema, explicou que, para fazer a teoria das regras do casamento, o matemático não precisava reduzi-la a um processo quantitativo; na verdade, ele nem precisava saber o que era casamento. Tudo o que ele pediu foi primeiro que os casamentos observados em uma dada sociedade pudessem ser reduzidos a um número finito de classes; em seguida, que essas classes fossem unidas entre si por determinadas relações (por exemplo, que existe sempre a mesma relação entre a “classe” de casamento do irmão e a “classe” de casamento da irmã, ou entre a “classe” de casamento do irmão e a “classe” de casamento da irmã, ou entre a “classe” de casamento dos pais e a “classe” de casamento dos filhos). A partir deste momento, todas as regras matrimoniais de uma dada sociedade poderiam ser colocadas em equações, e estas equações poderiam ser tratadas segundo métodos de raciocínio rigorosos e comprovados, enquanto a natureza íntima do fenômeno estudado – o casamento – está fora de questão e pode até permanecer completamente ignorado[9].

Esse exemplo, por mais simples e resumido que seja, ilustra bem a via cuja colaboração entre a matemática e as ciências humanas tende agora a tomar. A grande dificuldade no passado era decorrente da natureza qualitativa de nossos estudos. Para submeter o estudo qualitativo a um tratamento quantitativo, era necessário ou trapacear com eles ou empobrecê-los sem remédio. Mas os ramos da matemática são numerosos hoje (teoria dos conjuntos, teoria dos grupos, topologia, etc.), cujo objetivo é estabelecer relações rigorosas entre classes de indivíduos separadas entre si por valores descontínuos, e esta descontinuidade é precisamente uma das propriedades essências dos conjuntos qualitativos uns em relação aos outros, e é nisto que reside seu caráter supostamente “incomensurável”, “inefável”, etc.

Essas matemáticas humanas, que nem os matemáticos nem os sociólogos sabem exatamente em qual lugar procurar e que, sem dúvida, são largamente feitas, serão, em todo caso, muito diferentes daquelas graças às quais as ciências sociais tentaram dar uma forma rigoroso a suas observações. Elas estão determinados a escapar ao desespero dos “grandes números” – essa jangada em que agonizaria as ciências sociais, perdidas em um oceano de números; seu objetivo final não é mais registrar curvas monótonas de evoluções progressivas e contínuas. Seu domínio não é o das variações infinitesimais detectadas em análise de vastas pilhas de dados. O quadro é mais aquele oferecido pelo estudo dos pequenos números e das grandes mudanças causadas pela transição de um número para outro. Se nos for permitido a imagem, diremos que estamos menos preocupados com as consequências teóricas de um aumento populacional de 10% em um país de 50 milhões de habitantes do que com as transformações estruturais que ocorrem quando um “ménage à deux” se torna um “ménage à trois”. Ao estudar as possibilidades e constrangimentos ligados ao número de participantes em grupos muito pequenos (que, deste ponto de vista, permanecem “muito pequenos” mesmo que os participantes sejam eles próprios conjuntos que compreendem cada um dos milhões de indivíduos), estamos, sem dúvida, revivendo uma tradição muito antiga: porque os primeiros filósofos gregos, os sábios da China e da Índia e os pensadores nativos indígenas, próprios do coração da África e América Pré-colonial, estavam todos preocupados com o significado e a virtude própria dos números; a civilização indo-europeia, por exemplo, tinha uma predileção pelo número 3, enquanto as africanas e as americanas pensariam mais pelo 4; propriedades lógico-matemáticas bem definidas são associadas para essas escolhas.

Seja como for, no terreno do pensamento moderno, essa reconsideração em homenagem aos pequenos números deveria ter consequências imprevistas.

Certamente não cabe a nós avaliar a magnitude da reviravolta introduzida na ciência econômica pelos trabalhos de von Neumann e Morgenstern, aos quais já mencionamos várias vezes. Mas o sociólogo e o historiador das ideias certamente têm o direito de tentar compreender as mudanças gerais nas atitudes mentais provocadas pela introdução de novos pontos de vista, e isso não apenas entre os economistas. Há pouco tempo, o trabalho dos economistas se baseava exclusivamente em estatísticas e análises funcionais. Eles consideravam grandes números, longas séries de variações no tempo e no espaço, e a partir disso desenhavam curvas e tentavam determinar correlações. Tínhamos, e legitimamente continuamos a ter, muito respeito por tais pesquisas, que permitem prever ou prevenir certas correlações indesejáveis, ou manter e dar origem a outras consideradas como desejáveis. Em certo ponto – e ainda assim nem sempre concordamos com sua importância – essas especulações possuem serventia; mas elas se situam em tal nível de abstração, envolvendo conjuntos tão vastos de variáveis, que, por um lado, nunca se tem certeza de que a interpretação proposta seja a única possível, ou se simplesmente seja a melhor (ou mesmo, na maioria das vezes, que terá êxito); e, por outro lado, mesmo na hipótese mais favorável em que a experiência confirme a previsão em todos os pontos, não entendemos como as coisas acontecem, porque nenhum de nós jamais encontra em sua experiência individual os seres da razão cujos economistas produzem em seu empreendimento usual e que são chamados: utilidade marginal, lucratividade, produtividade ou lucro…

Caso seja aberto o livro Theory of Games [Teoria dos Jogos], o que encontramos lá? Em primeiro lugar, sem dúvida, um aparato matemático mais complicado e refinado que o encontrado nos tratados econômicos ou mesmo econométricos. Mas, ao mesmo tempo, e por um singular paradoxo, os objetos de que estão falando são muito mais simples. Não são mais noções abstratas, mas homens e grupos de homens; e, na maior parte das vezes, pequenos grupos de dois, três ou quatro participantes, como aqueles que se forma para jogar o xadrez, o bridge e o pôquer. Por outro lado, esses participantes estão envolvidos em operações que correspondem todas a experiências vividas: eles lutam ou fazem aliança, conspiram entre eles ou uns contra os outros, cooperam ou se exploram entre eles. Trata-se, portanto, de uma economia que aspira a um rigor matemático muito avançado e que, ao mesmo tempo, se abstém de considerar outra coisa que não seja seres concretos, dotados de existência empírica e que oferecem uma significação imediata tanto do ponto de vista histórico como psicológico.

Qual valor possui, afinal, essa nova economia? Essa pergunta é assunto para os especialistas. Nesse texto, vamos nos contentar em sublinham que ela participa simultaneamente das duas grandes correntes de pensamento que até agora dividia a ciência econômica: por um lado, a economia pura ou que se pretende como tal, aquela que trata de identificar o Homo economicus com um indivíduo perfeitamente racional; por outro, a economia sociológica e histórica como criada por Karl Marx, que quer ser antes de tudo a dialética de um combate. Contudo, os dois aspectos também estão igualmente presentes na teoria de von Neuman. Pela primeira vez, portanto, uma linguagem comum é posta à economia chamada burguesa e capitalista e à economia marxista. Isso certamente não significa que eles vão se entender; mas que, ao menos, o diálogo se tornou possível entre eles, e é o tratamento matemático que permitiu essa evolução surpreendente.

Tomemos emprestado um segundo exemplo, agora presente no domínio da psicologia social e, mais particularmente, no trabalho que Louis Guttman apresenta, primeiro, no monumental American Soldier[10] e, mais recentemente, na obra coletiva Mathematical Thinking in the Social Sciences[11]. No começo da última guerra mundial, o exército dos EUA decidiu apelar em grande escala aos especialistas das ciências sociais com o objetivo de introduzir alguma ordem e clareza nos problemas psicológicos e sociológicos de recrutamento e seleção, os investigadores se depararam com uma dificuldade preliminar: como atribuir às respostas, aparentemente heterogêneas, dadas aos questionários valores numéricos permitindo sua comparação?

Enquanto Lazarsfeld continuou sua pesquisa procurando formar uma base objetiva para a noção de personalidade, baseada em uma interpretação probabilística[12], Guttman se engajou em uma via totalmente diferente e com um aporte sem dúvida mais revolucionário. Ele notou que a escala numérica pode ser imediatamente estabelecida em certos casos privilegiados em que as perguntas são redigidas e classificadas em ordem de extensão crescente. Por exemplo, em um questionário relativo ao tamanho, se eu pedir uma resposta para as seguintes perguntas: “você tem mais de 150 centímetros de altura? Mais de 160? Mais de 170?”, e assim por diante, um indivíduo qualquer responderia “sim” à terceira pergunta sem responder automaticamente “sim” às anteriores (mas não necessariamente às seguintes). A experiência prova que as escalas numéricas obtidas apresentam certas características notáveis de harmonia e regularidade, que podem ser imediatamente percebidas; elas traduzem intuitivamente a clareza da estrutura lógica e psicológica dos questionários correspondentes. Ora, Guttman conseguiu inverter, por assim dizer, essa relação entre ciências sociais e matemática. Ele mostrou que, mesmo em questionários elaborados de forma diferente e cuja estrutura psicológica e lógica não é conhecida de antemão, é sempre possível reorganizar as respostas de forma a encontrar o equilíbrio ideal. E as manipulações que têm sido realizadas para conseguir isso, por sua vez, permitem uma análise do questionário inicial em seus componentes lógico-psicológicos, de modo que um tratamento em aparência puramente formal dos resultados de um questionário qualquer pode ser crítico, ou seja, torna-se um instrumento de descoberta no campo das próprias ciências sociais.

Voltando, em suas últimas publicações, quando trata de certos problemas tradicionais da psicologia social e, particularmente, os temas fundamentais do pensamento dos grandes precursores – Speaman e Thurstone – Guttman lança luz inteiramente nova sobre os problemas psicológicos tratados de forma clássica pela análise fatorial[13]; ele abre perspectivas originais aos métodos de seleção por testes e à interpretação teórica do papel e do valor deles. Ao mesmo tempo, e certamente sem ter conscientemente desejado, ele coloca à disposição dos historiadores, sociólogos e antropólogos um método matemático aplicável ao problema da evolução e da hierarquização das culturas humanas, admiravelmente próprio, pela primeira vez, para resolver as dificuldades e contradições que, desde Gondorcet e Comte, bloqueavam sem esperança esse gênero de pesquisa.

Esses dois exemplos, um emprestado da ciência econômica e outro da psicologia social, fornecem melhor apreciação, ao menos esperamos, sobre o alcance e a originalidade das ebulições que estão ocorrendo nas ciências humanas e sociais, sob influência das correntes mais recentes do pensamento matemático moderno. Os artigos que se seguem nesse Bulletin ilustrarão as indicações mencionadas acima. Para que possamos ter uma ideia exata da situação, no entanto, será essencial completar sua leitura com os grandes trabalhos enumerados ao curso desta introdução e alguns outros (em particular, Studies in the Scope and Method of the American Soldier[14]), cujos principais são citados nas bibliografias especiais que seguem os artigos desse Bulletin. Infelizmente, também devemos estar cientes de duas dificuldades.

A grande maioria dos especialistas das ciências sociais ainda são, atualmente, produtos de uma formação clássica ou empírica. Muito poucos, entre eles, têm uma cultura matemática e, mesmo quando possuem, muitas vezes se apresenta muito elementar e conservadora. As novas perspectivas que foram abertas às ciências sociais por certas reflexões do pensamento matemático moderno exigem, portanto, aos especialistas das primeiras um considerável esforço de adaptação. Um bom exemplo do que pode ser feito nesse sentido foi dado recentemente pelo Social Science Research Council des États-Unis, que organizou no Dartmouth College, em Nova Hampshire, durante o verão de 1953, um seminário sobre matemáticas dirigido aos cientistas sociais. Ao longo de oito semanas, seis matemáticos exibiram em quarenta e dois auditórios os princípios da teoria dos conjuntos, da teoria dos grupos e do cálculo de probabilidades.

É necessário sublinhar que essas tentativas estão se multiplicando e se difundindo, mas não escondem seu caráter improvisado e provisório. Eles sem dúvida ajudarão aos especialistas das ciências sociais a não ficarem completamente perdidos durante as ebulições atuais; mas também devemos pensar na geração jovem, que fornecerá os professores e pesquisadores de amanhã; atualmente, os programas de ensino superior não fornecem nenhuma preparação matemática. Se as ciências sociais devem se tornar realmente ciências e, em suma, se elas devem continuar existindo daqui vinte anos, é necessário que uma reforma seja operada com toda urgência. Desde esse momento, podemos estar certos de que os jovens especialistas em ciências sociais deverão possuir agora uma sólida e moderna formação matemática, caso contrário serão varridos do cenário científico. Nesse sentido, uma importante tarefa cabe à Unesco. A necessidade de reforma curricular é sentida em todos os países; no entanto, os professores e administradores, que receberam, em sua maioria, uma formação tradicional, estão mal preparados intelectualmente para concebê-la e executá-la. Uma ação internacional, confiada ao reduzido número de especialistas que, por todo o mundo, hoje são capazes de pensar, tanto matematicamente quanto sociologicamente, em função da nova situação, pareceria, portanto, particularmente indicada. A Unesco estaria prestando um imenso serviço às ciências sociais se preparasse uma espécie de modelo teórico (que poderia ser modificado para adaptá-lo às situações locais) de um ensino das ciências sociais que equilibre sua contribuição tradicional com o aporte revolucionário da cultura e das pesquisas matemáticas.

No entanto, seria errado imaginar que o problema consiste simplesmente em reorganizar o ensino para permitir que os cientistas sociais se beneficiem dos avanços mais recentes da reflexão matemática. Não se trata apenas, ou acima de tudo, de pegar emprestado em bloco os métodos e os resultados concluídos das matemáticas. As necessidades específicas das ciências sociais, as características originais de seu objeto, impõem aos matemáticos um esforço especial de adaptação e invenção. A colaboração não pode ser unilateral. Por um lado, as matemáticas contribuíram para o progresso das ciências sociais, mas, por outro, os requisitos específicos destas abrirão perspectivas adicionais às matemáticas. Nesse sentido, trata-se de uma matemática nova que precisa ser criada. Essa fertilização recíproca foi, durante dois anos, o principal objeto do seminário sobre o uso da matemática nas ciências humanas e sociais, que foi realizado na Unesco em 1953-1954, sob os auspícios do Conseil international des sciences sociale no qual, do lado das ciências exatas e naturais, participaram matemáticos, físicos, biólogos, e, do lado das ciências humanas e sociais, economistas, psicólogos, sociólogos, historiadores, linguistas, antropólogos e psicanalistas. É ainda muito cedo para avaliar os resultados desse experimento audacioso; mas quaisquer que tenham sido suas insuficiências, facilmente previsíveis neste período de tentativa e erro, o testemunho unânime dos participantes estabelece claramente que todos foram enriquecidos por ele. Pois o homem não sofre menos em seu ser íntimo de compartimentação e exclusões intelectuais, do que sofre em sua existência coletiva de desconfiança e hostilidade entre grupos. No trabalho de unificação de métodos de pensamento, que nunca podem ser irredutíveis para os diferentes campos do conhecimento, contribuímos à busca de uma harmonia interior que talvez seja, em outro nível que o da Unesco, mas não menos efetiva à condição verdadeira de toda sabedoria e toda paz.


[1] Tradução para fins acadêmicos. Texto de introdução ao compêndio Bulletin international des sciences sociales: les mathématiques et les sciences sociales, publicado em 1954.

[2] TROUBETZKOY, Grundzuge der Phonologie, 1939.

[3] Claude SHANNON, The Mathematical Theory of Communication, 1949.

[4] Theory of Games and Economic Behavior.

[5] WIENER, Cybernetics, or Control and Communication m the Animal and the Machine, 1948.

[6] Udny YULE, Statistical Study of Literary Vocabulary, 1945.

[7] Ver o artigo de M.Tintner.

[8] F. A. VONHAYEK, Scientism and the Study of Society, 1952.

[9] C, LÉVI-STRAUSS, Les structures élémentaires de la parenté, 1949.

[10] Textes recueillis par S. A. StoufEer, 4 vol., 1949-1950,

[11] Textes recueillis par P. F. Lazarsfeld, 1954.

[12] P.F. LAZARSFELD, “A Conceptual Introduction to Latent Structure Analysis”, Mathematical Thinking in the Social Sciences, 1954; chap. 7.

[13] Louis GUTTMAN , “A New Approach to Factor Analysis: the Radex”, Mathematical Thinking in the Social Sciences, chap. 6.

[14] Textos reunidos por R. K. Merton et P. F. Lazarsfeld.

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