Lacan com (e sem) Koyré

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Eu gostaria de começar minha fala parabenizando os colegas Gabriel e Luiz pela iniciativa de dedicar uma série de encontros para tratar do assunto “Psicanálise e Ciência”, tema infelizmente ainda pouco debatido pelos psicanalistas. E também gostaria de agradecer pelo convite de estar apresentando um pouco das minhas pesquisas recentes.

Hoje, pretendo falar de dois pontos.

No primeiro, irei tratar das aproximações entre o filósofo e historiador da ciência Alexandre Koyré e o psicanalista Jacques Lacan. Esse ponto vai ser tratado de maneira bastante breve, pois o que eu poderia dizer sobre o assunto já escrevi na minha dissertação de mestrado que está disponível no acervo da UFGRS[2].

No segundo, tentarei demonstrar, segundo minha avaliação, em qual sentido o tema da ciência em Lacan segue um caminho autônomo em relação àquele adotado nas pesquisas de Koyré. Esse caminho autônomo recebe o nome de ciências conjecturais, assunto bastante evocado por Lacan quando busca traçar o campo científico de pertencimento da psicanálise.

Por causa das convergências e das divergências entre dois autores achei por bem chamar nossa conversa de “Lacan com (e sem) Koyré”.

Lacan com Koyré

Para termos uma visão geral da pesquisa de Koyré é importante retomar seu percurso intelectual. Koyré nasceu na Rússia e aos dezessete anos foi estudar filosofia e matemática com Edmund Husserl e David Hilbert na Alemanha. Nesse período, suas pesquisas são dedicadas à teoria dos conjuntos e aos paradoxos lógicos. Depois de não ter sido admitido no doutorado com Husserl, Koyré migrou para Paris e defendeu sua tese em 1929 sobre o místico Jacob Boehme[3].

Foto de Alexandre Koyré
Alexandre Koyré (1892-1964)

Entre os anos vinte e começo dos anos trinta, Koyré lecionou na sessão de Ciência Religiosa da École Pratique, mesmo departamento que posteriormente Lévi-Strauss também realizará os seus seminários. Nesse período, um dos temas abordados por Koyré foi o da filosofia da religião em Hegel. Porém, após ter sido chamado para lecionar na Universidade do Cairo, Koyré convida seu aluno e compatriota russo, Alexandre Kojève, para substitui-lo nas aulas sobre Hegel. É importante destacar que o próprio Kojève assume que, antes das lições de Koyré, leu quatro vezes A Fenomenologia do Espírito sem entender uma única palavra e suas aulas foram uma continuação do que tinha apreendido com seu mestre[4]. Sabemos que Lacan frequentou os famosos seminários de Kojève sobre Hegel e poderíamos considerar que sua leitura recebeu uma influência indireta de Koyré, visto que Kojève era seu aluno.

Na segunda Guerra Mundial, Koyré foi enviado junto com Lévi-Strauss, Jakobson e outros para lecionar na cidade de Nova York, na recém-inaugurada École Libre des Hautes Études. É importante destacar que Koyré apresentou Lévi-Strauss para Jakobson depois que o antropólogo afirmou que estava procurando por “essa noção de estrutura que os linguistas haviam elaborado”[5]. Com o fim da guerra e o retorno a Paris, Koyré realizou um jantar em 1949 que proporcionou o encontro entre Lévi-Strauss e Lacan.

Cartaz de apresentação do departamento ultramarino da École Libre des Hautes Études
Cartaz de apresentação do departamento ultramarino da École Libre des Hautes Études

Façamos uma pausa. Poderíamos considerar Koyré como o idealizador da moda intelectual parisiense dos sessenta que ficou conhecida como estruturalismo? Isso me parece um exagero. O professor Richard Simanke me ofereceu uma imagem que me parece mais apropriada, Koyré poderia ser considerado como uma espécie de carteiro que entregou para Jakobson, Lévi-Strauss e Lacan sua própria mensagem vinda de um outro. Da mesma forma, poderíamos considerar Koyré como o epistemólogo de Lacan, o cara que lhe ofereceu o seu modelo de ciência? Tampouco tal afirmação me parece apropriada. Vale lembrar que outros autores já tentaram considerar Koyré como o epistemólogo de Lévi-Strauss, certamente por causa de sua ênfase nas matemáticas, e o próprio antropólogo afirmou em vida que não era o caso.

Aliás, é importante destacar que Koyré nunca se sentiu muito confortável com o título de epistemólogo e é fácil de sabermos o motivo depois de termos traçado brevemente o seu percurso intelectual. Sua formação ocorre na filosofia e na matemática, depois transita para o pensamento místico e religioso e apenas nos anos trinta surgem seus famosos textos sobre o pensamento científico. Esse caminho inusitado não decorre de qualquer prolixidade do autor, mas daquilo que chamou de sua convicção de que existe uma unidade profundada no pensamento[6]. O projeto de Koyré visava demonstrar que o pensamento seja filosófico, religioso, científico e estético se mesclam e se misturam, embora eventualmente o cientista queira se distanciar e esqueça das peripécias de seu próprio campo. Nesse sentido, o trabalho do filósofo historiador é introduzir o pensamento na história e acompanhar sua marcha.

Claro, não precisamos jogar fora o bebê com a água do banho, Lacan pode muito bem ter considerado como coordenadas epistemológicas certos aspectos que encontrou na história da ciência de Koyré, como o rechaço ao positivismo, o pressuposto da matematização do real e o entendimento acerca da antecedência dos conceitos em relação à experiência. Não precisarei aprofundar esses assuntos porque já os abordei na minha dissertação e o Luiz já tratou das teses de Koyré nos encontros anteriores. Em resumo, o ponto que gostaria de enfatizar é que me parece descabido dizer que Koyré foi o epistemólogo de Lacan.

Lacan sem Koyré

Depois dessas considerações, podemos passar ao segundo ponto do nosso encontro e tratar do tema da ciência conjectural em Lacan. A impressão que gostaria de compartilhar com vocês é que o desenrolar das ciências conjecturais passou à margem da história da ciência contada por Koyré.

Nos Escritos de Lacan existem 5 menções explicitas ao tema das ciências conjecturais (infelizmente, não fiz o levantamento em outros artigos e nos Seminários, deixo o trabalho para outros colegas).

Ciência conjectural nos Escritos de Lacan
Texto/ano/páginaAssunto
Função e campo, 1953, p. 285.A ciência conjectural resgata o sentido de ciência de sempre (Teeteto) e faz com que reconsideremos o tipo de ciência que herdamos do século XIX (positivismo). O tema da ciência conjectural estava sendo retomado naquele período (anos 50).
Função e campo, 1953, p. 287.A ciência conjectural é diferente da ciência exata, pois, embora não descarte o rigor, opera no campo da verdade.
A coisa freudiana,1955, p. 437.Ciência da intersubjetividade é diferente da ciência humana.
Situação da psicanálise em 1956, 1956, p. 475.As leis da intersubjetividade são matemáticas.
A ciência e a verdade, 1965, p. 877.A oposição entre ciência exata e ciência conjectural não pode ser sustentada, visto que o termo conjectura comporta um cálculo exato (probabilístico).

Para trabalharmos o que estou chamado de percurso marginalizado das ciências conjecturais, podemos usar algumas das lições que aprendemos com Koyré, embora tenhamos que futuramente caminhar de forma autônoma. Lembremos que o autor nos conta que, por mais de dois mil anos, o paradigma para explicar como o mundo é organizado foi fornecido pela grande síntese aristotélica[7]. Até o final da Idade Média o mundo é pensado como um todo finito e ordenado em que todos os seres possuem um lugar predefinido de acordo com seus respectivos valores. A posição de cada coisa corresponde com o seu grau de perfeição em uma escala que abrange tudo o que existe (matéria, Homem, planetas e Deus). A sabedoria divina é o agente responsável pela organização perfeita e harmônica do Cosmo e os seres apenas cumprem o desígnio fatal de ocupar o lugar que lhes foi conferido.

Não é difícil de perceber que tal doutrina dos lugares naturais não só busca explicar porque os corpos pesados caem ao invés de subir ou porque os planetas giram ao redor da Terra, mas também porque o lugar do escravo é servir e o papel da mulher é procriar. A concepção de ciência de Aristóteles possui ramificações que inclui questões filosóficas e éticas.

A implosão do Cosmo antigo fez com que os critérios que um dia governaram o mundo fossem colapsados. Tal acontecimento ocorreu no Renascimento. O período renascentista não foi marcado apenas pela redescoberta dos clássicos antigos, pela contestação religiosa e pelas grandes expedições marítimas, como também pela ausência de critérios para distinguir o pensável do impensável, o certo do duvidoso. Isso produziu tanto uma curiosidade sem limites, de onde floresceu uma cultura erudita, como também possibilitou o surgimento de um pensamento mágico com grande interesse na alquimia, astrologia e demologia.

O século XVI foi o período de uma crise espiritual no ocidente em que homens e mulheres se encontravam atravessados pela sensação de incerteza, pois, sem critérios para distinguir o certo do falso, o pensamento se envolve de dúvida, confusão e ceticismo. Montaigne é o exemplo maior do homem afetado e paralisado pela dúvida e seu livro Ensaios construí o testemunho dessa experiência. Lembremos uma de suas passagens. Depois de procurar por algo certo e seguro no mundo e ter fracassado na busca, Montaigne diz ter tentado encontrar no seu próprio “eu” por algum critério firme, mas diz não ter encontrado nada além de incerteza, confusão e vazio[8]. É verdade, Montaigne foi o grande destruidor das crenças e das verdades antigas, porém, não empreendeu tal tarefa por vontade própria. Ele sofria da atmosfera de incerteza presente em sua cultura, sua única alternativa era duvidar de tudo.

Por outro lado, Descartes libertou-se da dúvida, pois pôde dominá-la ao exercê-la como método (o famoso método da dúvida hiperbólica)[9]. Enquanto Montaigne era coagido pela dúvida, Descartes duvidava como ato voluntário. Para Descartes, o ceticismo de Montaigne era uma fraqueza do espírito que precisava ser combatido e superado.

Não preciso entrar no mundo reduzido ao geométrico que Descartes ofereceu como resposta aos problemas científicos de sua época, gostaria apenas de destacar suas considerações no plano da ação humana, o que o autor chamou de moral provisória.

Ser o mais firme e o mais resoluto possível em minhas ações, em não seguir menos constantemente do que se fossem muito seguras as opiniões mais duvidosas, sempre que eu me tivesse decidido a tanto. Imitando nisso os viajantes que, vendo-se extraviados nalguma floresta, não devem errar volteando, ora para um lado, ora para outro, nem menos ainda deter-se num sítio, mas caminhar sempre o mais reto possível para um mesmo lado, e não mudá-lo por fracas razões, ainda que no começo só o acaso talvez haja determinado a sua escolha: pois, por este meio, se não vão exatamente aonde desejam, ao menos chegarão no fim a alguma parte, onde verossimilmente estarão melhor do que no meio de uma floresta. E, assim como as ações da vida não suportam às vezes qualquer delonga, é uma verdade muito certa que, quando não está em nosso poder o discernir as opiniões mais verdadeiras, devemos seguir as mais prováveis; e mesmo, ainda que não notemos em umas mais probabilidades do que em outras, devemos, não obstante, decidir-nos por algumas e considerá-las depois não mais como duvidosas, na medida em que se relacionam com a prática, mas como muito verdadeiras e muito certas, porquanto a razão que a isso nos decidiu se apresenta como tal[10].

Logo em seguida, Descartes complementa com algo que pode nos interessar enquanto analistas:

E isto me permitiu, desde então, libertar-me de todos os arrependimentos e remorsos que costumam agitar as consciências desses espíritos fracos e vacilantes que se deixam levar inconstantemente a praticar, como boas, as coisas que depois julgam más[11].

Descartes nos conta o apólogo do homem preso em uma floresta e tomado de incerteza sobre qual caminho seguir. Nessa situação, o que nos recomenda é não ficarmos paralisados no meio da densa mata, mas escolher uma via e segui-la mesmo que no começo apenas o acaso pareça conduzir os nossos passos. É na medida que os caminhos possíveis são explorados que adquirimos conhecimento da estrutura da mata e podemos planejar o itinerário das ações futuras. A imagem da floresta ou do labirinto cujos caminhos se bifurcam evoca um problema e uma estrutura matemática muito importante aos nossos interesses. Esse assunto, assim como os temas do acaso, da caminhada errante, dos conjuntos de possibilidades e da eficácia da ação são todos pontos evocados de uma forma ou de outra no campo das ciências conjecturais.

Para avançarmos na história das ciências conjecturais, ao invés de pegarmos o caminho escolhido por Koyré que começa em Copérnico, passa por Galileu, Kepler até chegar na síntese newtoniana e finalmente em Einstein; iremos adotar o caminho oferecido por Lacan que começa em Pascal e Fermat, passa por Bernoulli até chegar em Norbert Wiener, Claude Shannon, von Neumann (e o próprio Lacan). Parte dessa história pode ser familiar para vocês, pois Lacan traça sua linha geral, entre outros lugares, na conferência “Psicanálise e Cibernética, ou da natureza da linguagem”[12].

A versão moderna e ocidental das ciências conjecturais começa no século XVII durante uma reunião na Academia de Ciências Parisiense. Nessa reunião o escritor Antoine Gombaud, amante das matemáticas nas horas vagas, propõe o seguinte problema à sua audiência: imaginemos que dois jogadores tenham apostado uma quantia de dinheiro em um jogo de azar, que acabaria assim que um dos jogadores vencesse três partidas. Porém, o jogo é interrompido abruptamente quando um dos jogadores vencia o outro por 2×1. Nesse caso, como o dinheiro da aposta poderia ser dividido entre os dois jogadores? A simples divisão do dinheiro em duas metades iguais desconsideraria o que tinha ocorrido na partida e não seria justa com o jogador com mais vitórias. Tampouco entregar todo o dinheiro ao jogador com duas vitórias resolveria o problema, pois estaríamos negligenciando o fato de que o outro jogador também ganhou uma partida.

Retrato de Pierre de Fermat
Pierre de Fermat (1607-1665)
Retrato de Blaise Pascal
Blaise Pascal
(1623-1662)

Esse assunto ficou conhecido como “problema dos pontos” e foi o tema de análise nas famosas correspondências entre Pierre de Fermat e Blaise Pascal. A novidade da abordagem empregada pelos dois autores, cada um usando distintas ferramentas matemáticas, consistiu em não considerar apenas o que havia ocorrido na partida, mas imaginar o que poderia ocorrer caso continuasse no ponto em que foi interrompida. Nesse caso, na hipótese da rodada seguinte, o primeiro jogador teria 50% de chances de encerra o jogo e o segundo jogador teria 50% de ganhar mais uma partida, fazendo com que o jogo prosseguisse. Nessa última situação, os jogadores estariam empatados cada um com duas partidas e no conjunto total das possibilidades de desfechos do jogo cada um possuiria 25% de chances de vencer. Nesse caso, o resultado da divisão do dinheiro, levando em consideração todas as possibilidades e as chances de ocorrer caso o jogo continuasse, seria de ¾ para o jogador que estava vencendo.

Representação do "problema dos pontos"

A partir desse momento, o problema do futuro deixa de ser assunto exclusivo de feiticeiros, oráculos, sacerdotes e adivinhos, tornando-se uma questão passível de ser analisada e medida com o auxílio das matemáticas. O assunto recebe outros tratamentos na obra de Pascal, como o seu conhecido triângulo aritmético, em que fornece uma contagem dos futuros, e no capítulo “Da necessidade da aposta”, em seu livro Pensamentos, em que busca convencer o interlocutor cético da necessidade de apostar na existência de Deus usando argumentos probabilísticos. Não preciso lembrar que são assuntos abordados por Lacan em diferentes momentos.

Avancemos mais um pouco em nossa história.

Jacob Bernoulli nasceu na suíça em 1654, no mesmo ano em que Fermat e Pascal trocaram suas cartas. Ele foi responsável por escrever o documento fundador da probabilidade matemática, chamado justamente de Ars Conjectandi (A arte de conjecturar) e traduzido do latim para o francês também como A arte de adivinhar. O livro foi publicado 8 anos após o falecimento do autor e apresenta 4 capítulos. No primeiro capítulo, Bernoulli resgata o trabalho de Huygens sobre jogos, abordando o assunto de maneira mais extensa e apresentando novos métodos de análise. No segundo capítulo, o autor faz uma exposição sistemática da matemática de combinações e permutações. No terceiro capítulo, o recurso matemático é aplicado em uma série de jogos. No quarto capítulo inacabado, Bernoulli utiliza o mesmo método empregado na análise dos jogos de azar para estabelecer bases de aplicação matemática aos julgamentos na esfera civil, moral e econômica. A aplicação das matemáticas em setores da moral e da política era inédito na época e foi responsável por conferir o sucesso do livro em seu lançamento.

Retrato de Jacob Bernoulli
Jacob Bernoulli
(1654-1705)
Capa do livro Ars Conjectandi (A arte de conjecturar), escrito por Jacob Bernoulli
Ars Conjectandi
(1713)

A respeito do método conjectural, Bernoulli diz o seguinte em seu livro póstumo de 1713:

Para o que é certo e fora do terreno da dúvida, chamamos de conhecimento e compressão; para todo o resto, dizemos apenas conjectura ou opinião. Conjecturar algo é medir seu grau de probabilidade: assim, o saber conjecturado ou estocástico se define para nós como saber mensurar o mais exatamente possível os graus de probabilidades, com o objetivo de que possamos escolher ou aceitar em nossas decisões e ações o que nos parece melhor, mais satisfatório, mais seguro, mais prudente: esse é o único objetivo que se aplica em toda sabedoria do filósofo, toda clarividência do ‘político’.

Segundo Bernoulli, o método de conjecturar se aplica quando estamos diante da necessidade de tomar uma ação ou uma decisão, mas estamos atravessados pela situação de incerteza e dúvida porque não temos certeza absoluta sobre o assunto em questão. O exemplo que o autor sempre recorre para ilustrar tal situação é o seguinte: imaginemos uma urna repleta de bolinhas brancas e pretas que não sabemos como estão distribuídas, da qual só podemos retirar uma bolinha de cada vez e depois reinseri-la no recipiente. Nesse caso, poderíamos saber o valor do número de bolinhas brancas e pretas? A resposta de Bernoulli é que quanto mais observações realizamos mais nos aproximamos do valor verdadeiro de bolinhas contidas na urna e, assim, podemos estimar o seu número mesmo que não tenhamos aberto o recipiente. Isso significa dizer que existe uma proporção média que mesmo os eventos aleatórios obedecem, tal regra é conhecida como lei dos grandes números. Em outros termos, até mesmo o acaso (em francês hazard) possui regras que podem ser conhecidas. Dessa forma, embora não tenhamos a priori como avaliar com certeza um problema, é possível estimar ou conjecturar a posteriori (ou seja, após uma longa série de observações) qual resultado é mais provável do que outro e, assim, usá-lo na condução da ação.

Eu encerro aqui nossa brevíssima história do antepassado das ciências conjecturais, apresentando apenas sua linha geral e negligenciando alguns dos atores que mereceriam o devido reconhecimento[13]. Gostaria de terminar minha fala comentando o contexto intelectual de Lacan.

Em 1953, Lacan apresentou o famoso Discurso de Roma que podemos considerar como sendo o seu manifesto político e epistemológico por outra psicanálise. Seu tom era de alarme, dizia estar ocorrendo uma mutação no interior das ciências humanas, cujo campo analítico não poderia se demonstrar indiferente. E o mais importante, Lacan afirmava que estava ocorrendo o resgate das ciências conjeturais[14].

Muita tinta foi gasta para falar do papel da linguística de Jakobson ou Benveniste e da antropologia de Lévi-Strauss na modelagem do projeto lacaniano, não preciso retomar o assunto. O que gostaria de destacar é que quase nada foi falado da teoria da informação, da cibernética e da teoria dos jogos. Talvez por puro preconceito deixamos de perceber que o projeto das ciências conjecturais estava sendo retomado justamente por essas três disciplinas no mesmo período em que Lacan buscava repensar o que chamamos de psicanálise. Retomemos brevemente o que estava ocorrendo no mundo de língua inglesa em meados da década de quarente e cinquenta.

Teoria da informação: ciência criada pelo matemático Claude Shannon que trabalhava no laboratório da companhia de telecomunicações Bell. A preocupação fundamental para o engenheiro decorre em ter que lidar com perturbações e ruídos que interferem na condução da mensagem e fazer com que ela chegue da melhor maneira possível ao destinatário. A informação transmitida entre duas pessoas deixa de ser considerada segundo o ponto de vista semântico para ser tratada segundo o seu nível de incerteza ou entropia. Sem entrar nos problemas mais técnicos da disciplina, nos contentamos em dizer que lidar com uma mensagem que foi afetada pelo ruído envolver questões probabilísticas. Essa mesma técnica foi empregada por Alain Turing na decodificação da máquina Enigma no contexto da Segundo Guerra Mundial.

Cibernética: ciência definida por seu criador, o matemático Norbert Wiener, como o campo que trata da comunicação e do controle em animais e máquinas. A palavra cibernética foi pensada por Wiener em razão da metáfora náutica do timoneiro. Lembremos que no navio existe o capitão que ordena o rumo da viagem e o timoneiro que lida com os eventos adversos dos mares realizando correções na rota da embarcação, com o objetivo chegar ao seu destino. Com tal metáfora, Wiener não queria dizer outra coisa senão que o acaso não poderia ser mais abolido pelo engenheiro, pois suas máquinas deveriam se comportar como verdadeiras centrais de processamento do acaso (como o exemplo das baterias antiaéreas construídas na época). Essa noção adquiriu um nome mais bonito hoje, embora o princípio continue o mesmo, chamamos de Machine Learning.

Teoria dos Jogos: ciência criada pelo matemático von Neumann que faz uso das matemáticas como ferramenta privilegiada para analisar como os agentes interagem. A situação fundamental abordada pela teoria dos jogos consiste no seguinte: qual decisão posso tomar quando minha ação depende dos movimentos realizados pelos demais agentes? Caso os agentes cooperem entre si não teremos grande dificuldade de imaginam o cenário possível, mas caso exista conflitos de interesse os agentes podem se valer da astúcia e do blefe para simular suas próprias intenções ao outro. Não precisamos ir muito longe para percebemos que qualquer grau de incerteza acerca das intenções do outro pode me fazer realizar uma ação precipitada ou me deparar com uma situação de indecidibilidade (como Montaigne). A abordagem oferecida pela teoria dos jogos não leva em consideração os aspectos psicológicos dos agentes, pouco importa o tamanho de suas massas encefálicas, mas sim os aspectos lógicos das inter-relações (também chamados de estratégia).

A ciência conjectural possui uma origem menos gloriosa e afastada dos grandes problemas clássicos da física, seu nascimento ocorre no contexto dos jogos de azar e do uso recreativo das matemáticas para avaliar os resultados do arremesso de dados e moedas. Lacan também estava bastante advertido sobre esse passado, lembremos de sua sugestão de que uma análise é homóloga ao jogo de brigde entre quatro agentes[15], seu interesse pelo tema da aposta em Pascal justamente no ano em que trata do ato analítico[16], seu destaque ao jogo de “par ou ímpar” no conto A carta roubada de Poe[17], sua comparação entre o esquema da segunda tópica freudiana e uma loteria de bingo[18], etc.

Roleta de bingo
Representação do aparelho psíquico na segunda tópica freudiana
Representação do aparelho psíquico da segunda tópica freudiana

Eu considero que foi precisamente o interesse de Lacan em fazer da psicanálise uma ciência conjectural que o fez colocar na abertura dos Escritos, com o texto O seminário sobre A carta roubada, sua interpretação em que faz da associação livre um processo estocástico e do inconsciente uma cadeia de Markov. Tudo se passa como estivesse advertindo o leitor da seguinte forma: não entre aqui que não esteja interessado em saber como necessidade e acaso se relaciona e como o destino de alguém pode ser determinado com um lance de dados.


[1] Trabalho apresentado na Apertura para Outro Lacan (APOLa), São Paulo, em 12 de junho de 2023.

[2] Ver em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/249475.

[3] SALOMON, Marlon. Alexandre Koyré: Notas sobre sua trajetória intelectual. Em: Alexandre Koyré: historiador do pensamento. Goiânia: Almeida & Clément, 2010.

[4] KOJÈVE, Alexandre. Entrevista a Alexandre Kojève: los filósofos no me interesan, busco a los sabios. Em: El emperador Juliano y su arte de escribir. Buenos Aires: Grama ediciones, 2003.

[5] JORLAND, Gérard. La science dans la philosophie: Les recherches épistémologiques d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard, 1981, p. 23.

[6] Nas palavras do autor: “Desde o início de minhas pesquisas fui inspirado pela convicção da unidade do pensamento humano, particularmente em suas formas mais elevadas. Parece-me impossível separar, em compartimentos estanques, a história do pensamento filosófico e a história do pensamento religioso, do qual o primeiro sempre se serve, quer para nele inspirar-se, quer para refutá-lo”. KOYRÉ, Alexandre. (1951). Orientação e projetos de pesquisa. Em: Estudos de história do pensamento filosófico. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 1.

[7] KOYRÉ, Alexandre. (1957). Do mundo fechado ao universo infinito. (4ª ed.). Rio de Janeiro: Forense, 2006.

[8] MONTAIGNE, Michel. Da incoerência de nossas ações. Em: Ensaios. São Paulo: Editora 34, 2016.

[9] KOYRÉ, Alexandre.  (1938). Considerações sobre Descartes. (4ª ed.). Lisboa: Presença, 1992.

[10] DESCARTES, René. Discurso do método: para bem conduzir a própria razão e procurar a verdade nas ciências, p. 18. Disponível em: https://www.google.com/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=&ved=2ahUKEwjek7mAjeH_AhX0rpUCHePJAGcQFnoECBYQAQ&url=https%3A%2F%2Fedisciplinas.usp.br%2Fpluginfile.php%2F363690%2Fmod_resource%2Fcontent%2F1%2FDESCARTES_Discurso_do_m%25C3%25A9todo_Completo.pdf&usg=AOvVaw1KVtgpFv-U55XjZtLtRQTe&opi=89978449.

[11] Ibidem.

[12] LACAN, Jacques. (1954-55). O Seminário II: o eu na teoria de Freud e na técnica psicanalítica. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, pp. 396-414.

[13] Para uma análise mais completa sobre o tema das ciências conjecturais, ver em: FRANKLIN, James. The science of conjecture: evidence and probability before Pascal, 2015.

[14] No longo trecho, o autor comenta o seguinte: “A psicanálise desempenhou um papel na direção da subjetividade moderna, e não pode sustentá-lo sem ordená-lo pelo movimento que na ciência o elucida. É esse o problema dos fundamentos que devem assegurar a nossa disciplina seu lugar nas ciências: problema de formalização, na verdade muito mal introduzido. Pois parece que, retomados justamente por um capricho do espírito médico em oposição ao qual a psicanálise teve que se constituir, foi a exemplo dele, com um atraso de meio século em relação ao movimento das ciências, que procuramos ligar-nos a elas. Objetivação abstrata de nossa experiência em princípios fictícios ou simulados do método experimental: aí encontramos o efeito de preconceitos cujo campo, antes de mais nada seria preciso limpar, se quisermos cultivá-lo segundo sua estrutura autêntica. Praticantes da função simbólica, é espantoso que nos esquivemos de aprofundá-la, a ponto de desconhecer que é ela que nos situa no cerne do movimento que instaura uma nova ordem das ciências, com um novo questionamento da antropologia. Essa nova ordem não significa nada além de um retomo a uma noção de ciência verdadeira que já tem seus títulos inscritos numa tradição que parte do Teeteto. Essa noção se degradou, como se sabe, na inversão positivista que, colocando as ciências do homem no coroamento do edifício das ciências experimentais, na verdade as subordinou a estas. Essa noção provém de uma visão errônea da história da ciência, baseada no prestígio de um desenvolvimento especializado dos experimentos. Mas, hoje em dia, vindo as ciências conjecturais resgatar a noção da ciência de sempre, elas nos obrigam a rever a classificação das ciências que herdamos do século XIX, num sentido que os espíritos mais lúcidos denotam claramente. Basta acompanharmos a evolução concreta das disciplinas para nos apercebermos disso”. LACAN, J. (1956). Função e campo da fala e da linguagem em psicanálise. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 287-8.

[15] LACAN, J. (1958). A direção do tratamento e os princípios de seu poder. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[16] _____. (1967-68). Le séminaire XV: L’Acte psychanalytique. Sem publicação. Disponível em: http://staferla.free.fr/.

[17] _____. (1961). O seminário sobre “A carta roubada”. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

[18] _____. (1961). Observação sobre o relatório de Daniel Lagache. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

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