Lacan e os Annales: um pouco de história aos psicanalistas

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É de uma iniciação nos métodos do linguista, do historiador e, diria eu, do matemático que se deve tratar agora, para que uma nova geração de clínicos e pesquisadores resgate o sentido da experiência freudiana e seu motor.

Jacques Lacan, em A coisa freudiana

Não é segredo para mais ninguém que Lacan considerava necessário realizar uma reforma intelectual que tornasse possível o surgimento de uma geração renovada de clínicos e teóricos na psicanálise. Tal empreitada, também sabemos, envolveu um verdadeiro programa que contou com um espaço institucional próprio, não à toa chamado de Escola, e um conjunto mínimo de disciplinas indispensáveis aos futuros analistas. Nos últimos anos alguns colegas têm dedicado seus esforços em elencar cada uma das disciplinas e demonstrar suas respectivas importâncias à formação do psicanalista, observamos serem produzidos trabalhos sobre o papel da linguística, da antifilosofia, da lógica e da matemática. Porém, o papel atribuído ao método do historiador é desconsiderado ou subestimado.

A disciplina história possui tantas escolas, correntes e tendências quanto qualquer outro campo científico. Nesse caso, uma questão preliminar para responder qual contribuição o método do historiador poderia prestar à formação do analista é circunscrever o modelo historiográfico que estava sendo evocado pelo psicanalista. Como estamos falando de um francês que viveu em Paris no período entreguerras, não é difícil de deduzir que Lacan estava se referindo ao trabalho desenvolvido pelo pequeno grupo associado à revista Annales d’Histoire Économique et Sociale. A recepção de Lacan ao trabalho dos Annales pode também ser constatada por suas citações aos livros e artigos dos representantes do grupo.

Embora os representantes do que ficou conhecido como La nouvelle historie não constituísse uma unidade de pensamento bastante homogênea, podemos traçar as principais linhas de força que impulsionavam o trabalho do grupo. A revista Annales foi criada em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch. Ela serviu como órgão de combate em relação ao modelo de história propagado pela doutrina positiva, cuja atenção era centrada na descrição dos fatos e dados, no interesse pelos grandes acontecimentos históricos e no destaque aos indivíduos proeminentes de cada época.

O primeiro nível da crítica lançada pelos Annales contra os historiadores positivistas se destinava à noção de história relatada de maneira neutra. A tentativa de neutralidade dos positivistas era contraposta pela perspectiva de que os objetos e temas escolhidos pelo historiador dizem respeito aos problemas e inquietações que estão vigentes em sua própria época. Os problemas que surgem no presente condicionam e limitam o interesse que o historiador terá em relação aos temas do passado, períodos que são marcados por agitação social, econômica ou técnica iluminam certos objetos enquanto ofuscam outros. A história contada pelo historiador é duplamente mediada, em primeiro lugar pelos objetos e temas que são considerados como relevantes por seus contemporâneos e, em segundo lugar, pela escolha que o historiador faz em relação ao material que aceita ou rejeita.

O primeiro nível da crítica se desdobra em outro. O empirismo presente entre os historiadores produzia uma história construída sobre o simples arrolamento de documentos e arquivos. Em oposição, os defensores do novo método compreendiam que toda pesquisa historiográfica precisava ser orientada por um “problema-questão”. Os representantes do grupo entendiam que os dados em si mesmos não dizem nada, antes é necessário que o historiador consiga formular problemas e saiba interrogar os dados que dispõe. Em suma, é preciso colocar questões para receber respostas. Se não há problema, dizia Lucien Febvre, há apenas vazio. Tal abordagem recebeu o slogan de história-problema. 

A partir desses dois pontos, já podemos nos perguntar: qual relevância haveria no método do historiador que pudesse contribuir para o psicanalista? A depender de como entendamos o que é psicanálise, nenhuma! Porém, caso não estejamos convencidos de que já sabemos tudo sobre o que é psicanálise, nada nos impede de tentar extrair algumas consequências e buscar abrir possibilidades.

Em primeiro lugar, precisamos reconsiderar o modo corriqueiro de pensar o processo analítico como um percurso rumo ao passado da história individual. Na concepção de história oferecida pelos Annales, não é o passado que condiciona o futuro, mas o contrário. São os problemas que surgem no presente e surgirão no futuro que serão responsáveis por iluminar ou ofuscar certos aspectos do passado. O passado é vivo e responde aos problemas que são colocados a partir do presente.

Em segundo lugar, precisamos reconsiderar também o que chamamos de associação livre e escuta flutuante, caso os dois postulados técnicos sejam considerados como sinônimo de ouvir passivamente o relatar dos fatos. A orientação do tratamento precisa ser guiada por um “problema-questão”, caso contrário, o processo analítico estará fadado a cair na errância indefinida dos fatos que são simplesmente relatados um após o outro. Certamente podemos dizer que o psicanalista não é aquele que já sabe, mas poderíamos acrescentar que é aquele que procura. Contudo, como estamos tratando de uma investigação sobre um saber no qual não se sabe, é necessário que o “problema-questão” seja suficientemente flexível e possa ser redefinido ao longo do processo de acordo com os novos tópicos que surjam. Tal concepção pode ser encontrada de maneira lapidada em Marc Bloch:

No princípio, é o espírito. Nunca em nenhuma ciência, a observação passiva gerou algo de fecundo. Supondo, aliás, que ela seja possível. Com efeito, não nos deixemos enganar. Acontece, sem dúvida, de o questionário permanecer puramente instintivo. Entretanto ele está ali. Sem que o trabalhador tenha consciência disso, seus tópicos lhe são ditados pelas afirmações ou hesitações que suas explicações anteriores inscreveram obscuramente em seu cérebro, através da tradição, do senso comum, isto é, muito frequentemente, dos preconceitos comuns. Nunca se é tão receptivo quanto se acredita […] Naturalmente, é necessário que essa escolha ponderada de perguntas seja extremamente flexível, suscetível de agregar, no caminho, uma multiplicidade de novos tópicos, e aberta a todas as surpresas. De tal modo, no entanto, que possa desde o início servir de ímã às limalhas do documento. O explorador sabe muito bem, previamente, que o itinerário que ele estabelece, no começo, não será seguido ponto a ponto. Não ter um, no entanto, implicaria o risco de errar eternamente ao acaso.[1]

Outro conjunto de críticas que os Annales colocavam se relaciona com o enfoque dos historiadores sobre os feitos memoráveis dos reis e heróis de guerra e os grandes acontecimentos políticos e militares. O reducionismo gerado pela ênfase em relação aos indivíduos e suas proezas, era contestado pela exigência por uma história total que buscasse compreender o indivíduo no interior do espírito de um povo e de um período histórico. A história compartimentada na esfera política ou militar se alargava ao domínio dos valores e crenças que sustentam o modo de pensar em certa época e sociedade. Nesse sentido, o trabalho do historiador depende da interação com outras disciplinas, como geografia, sociologia, psicologia, economia, linguística, antropologia social, etc., para conseguir pensar uma história que seja ampliada e arejada.

Lucien Febvre publicou o livro O problema da incredulidade no século XVI em 1942. Nele, o autor parte do argumento do historiador Abel Lefranc de que François Rabelais era um homem à frente de seu tempo, um precursor do ateísmo em plena Renascença. Na primeira parte, Febvre realiza uma pesquisa filológica sobre o significado da expressão ateu no século XVI, visto que Rabelais era chamado dessa maneira por seus contemporâneos. Ele nos demonstra que, nessa época, o termo ateu não possuía o sentido atual que designa alguém descrente em Deus, mas era usado como uma ofensa pessoa com conotações diversas. Em seguida, Febvre analisa alguns trechos da obra de Rabelais que Lefranc considerava como blasfêmias lançadas contra à Igreja. A conclusão que se chega é um Rabelais completamente distinto daquele descrito por Lefranc, um homem crente que achava necessário realizar uma reforma no cristianismo, assim como outras figuras naquela época, não sua implosão.

Na segunda parte, saímos do foro íntimo do personagem Rabelais e acendemos à atitude espiritual do século XVI. Febvre concentra seus esforços para argumentar que o século XVI foi marcado por uma credulidade sem limites, época devota ao estudo da alquimia, da astrologia e da demonologia, voltada à crença no esoterismo e na bruxaria. A ferramenta mental (outillage mental) usada no período não possibilitava que houvesse descrença ou incredulidade, pois não havia o senso do impossível. Nesse caso, Rabelais não poderia ser um incrédulo em Deus naquele período porque essa possibilidade não estava ofertada pela ferramenta mental de sua época. Se na primeira parte o “problema-questão” do livro era “Rabelais foi um incrédulo?”, já em sua segunda parte se desloca para “Rabelais poderia ser um incrédulo no século XVI?”, melhor ainda, “Rabelais poderia não ter sido crédulo no século XVI?”.

A história centrada no indivíduo isolado e na ênfase sobre os assuntos políticos e militares é contraposta por uma história alargada em que vigora o social e o coletivo. Marc Bloch declarava que era equivocado dizer que o interesse da disciplina história é o passado, pois seu objeto é o homem no tempo. Isso significa que o interesse do historiador é o indivíduo apenas na medida em que pertence ao modo de querer, de pensar, de sentir e de crer que estão vigentes em cada época e sociedade. A semelhança de cada indivíduo com o seu tempo está na impossibilidade de conseguir pensar outra coisa senão aquilo que seu próprio tempo tornou pensável. Embora não seja fácil ou ofertado aos indivíduos romperem com os hábitos e costumes do corpo social que pertencem, não é menos verdade que todo sistema de crença possui o seu começo e o seu término. Há momentos em que o próprio tempo colapsa carregando consigo uma atitude espiritual antiga e cedendo lugar para outra.

Marc Bloch publicou o livro Os reis taumaturgos em 1924, quase vinte anos antes de Febvre publicar o seu livro, com o propósito de reconstruir no tempo e no espaço o fenômeno do toque real. Ao longo de sete século na França e na Inglaterra, era atribuído ao rei o poder sobrenatural de curar com o toque de suas mãos os enfermos de uma doença chamada durante o período de escrófula ou de mal do rei (hoje batizada de adenite tuberculosa). A prática do toque régio se originou na Idade Média, floresceu como jamais no século XVII e desapareceu completamente só em 1825, quando foi registrada pela última vez como sendo realizado por Carlos X. No livro, Bloch busca analisar o conjunto de condições históricas que tornou possível o começo e o término da prática.

A origem do toque régio possui um percurso histórico longo que remonta ao período medieval cuja figura da realeza era envolta por uma áurea sagrada, na qual acabou se convertendo na noção de que o próprio rei poderia operar milagres. A capacidade que os reis possuíam de realizar curas servia como termômetro de sua legitimidade social, assim como possuir cetro e coroa, de modo que era sinal de decadência ou de ascensão no poder conseguirem ou não praticar milagres. O desaparecimento do milagre régio decorreu da gradativa mudança que foi condicionada por lutas religiosas, revoluções políticas e pela investida racionalista na estrutura social. Na obra, Bloch afirmava querer contribuir para uma história política da Europa em seu sentido mais amplo e verdadeiro, cujo contexto político se encontra mesclado com o clima espiritual da época.

Os livros Os reis taumaturgos de Bloch e O problema da incredulidade no século XVI de Febvre são obras capitais do tipo de abordagem praticada pelos Annales e que ficou conhecida como história das mentalidades, gênero chamado atualmente de história social das ideias. Em ambos, o trabalho do historiador se desloca dos grandes acontecimentos que marcaram determinado período rumo às estruturas mentais que se modificam em uma temporalidade lenta e vagarosa. A abordagem da historiografia tradicional sobre os episódios súbitos e estrondosos da história humana é substituída por outro tipo de abordagem, cujo tempo parece quase estático e cujas rupturas são gestadas de maneira silenciosa ao longo de séculos.

Talvez possa parecer avesso ao campo da psicanálise pensar em uma história de longa duração como fazem os Annales. Contudo, creio que esse suposto contrassenso não esteja vinculado com algum atributo intrínseco à psicanálise, mas com uma tendência bastante assimilada pelos próprios psicanalistas de só conseguir observar com um olhar míope pelo retrovisor da história. A tendência difundida entre os praticantes da psicanálise de conceber o tempo de maneira comprimida é reproduzida nos diversos trabalhos que se propõe a tratar da clínica no contemporâneo, dos novos sintomas, do mal-estar na atualidade, das novas formas de subjetividade, da psicanálise no século XXI, etc.

A respeito da prática realizada pela maioria dos analistas, podemos considerar que o modo de conduzir sessões curtas e ultracurtas, com 15 ou 5 minutos de duração, surge tão somente como o resultado da mesma concepção comprimida de tempo. É possível ainda avançar no diagnóstico interrogando acerca da ênfase que os colegas depositam sobre os eventos estrondosos da história individual, sem que seja levado em consideração todo o contexto silencioso que se desenrola ao longo das sessões. Tudo se passa como se estivéssemos numa floresta desconhecia à noite e só conseguíssemos nos orientar pelos vagalumes que acendem e apagam sem que o caminho seja realmente iluminado, algo parecido ocorre com os analistas quando são orientados pelos breves acidentes dramáticos e excepcionais apresentados no relato do paciente sem conseguir entrar na trama que estão inseridos. A mesma tendência se observa em ambas situações, ora história do tempo comprimido, ora história dos episódios isolados de seu respectivo contexto.

Todos sabemos que existe entre boa partes dos psicanalistas uma forte tendência de pensar seus pacientes como átomos isolados do contexto sócio-histórico. Nos últimos anos foram publicados alguns trabalhos que tratam do problema do individualismo e de sua relação com o contexto neoliberal, não preciso retomar o assunto. Porém, algo mais auspicioso na proposta dos Annales, que poderia inspirar novas investigações na psicanálise, seria revisar o próprio modo como setorizamos o pensamento em planos como o individual, o econômico, o social, o político, etc., aliás, tal subdivisão não existe além das fronteiras universitárias. A exigiria em compreendermos nossa vida espiritual em sua forma alargada e seu longo percurso histórico, talvez nos levassem àquilo que Bloch chamou de pensar o político em seu sentido amplo e verdadeiro.

Essas orientações de pesquisa não são excepcionalmente novas e tampouco estão longe do que foi realizado até agora, Lacan possuía dois diagnósticos que envolve uma história de longa duração e um contexto mais alargado para situar o campo analítico. No primeiro, elaborado na década de 30 e inspirado em Émile Durkheim, sugere que o tratamento analítico se endereça aos efeitos produzidos pelo processo de contração da família e declínio da figura de autoridade no Ocidente. No segundo, elaborado na década de 60 e inspirado em Alexandre Koyré, propõe que o nascimento da psicanálise dependeu do surgimento de uma atitude intelectual vinculada à ciência moderna e uma concepção específica de sujeito. Não é demais lembrar que o primeiro diagnóstico surge em um artigo que foi encomendado pelo próprio Febvre para ser publicado na Encyclopédie Française e o segundo aparece como resultado da interlocução com um autor que fez uma história filosófica da ciência cujo método historiográfico é bastante próximo ao praticado pelos Annales.

Não estou convencido que os dois diagnósticos apresentados por Lacan possam ser os únicos e tampouco que o segundo foi suficientemente elucidado. Uma linha de investigação que poderia ser conduzida seria, por exemplo, analisar se é possível reconstruir o processo histórico para saber se existe algum elo entre os reis taumaturgos e Freud. Essa pesquisa poderia esclarecer se passamos através de mutações sócio-históricas silenciosas do king’s touch à talking cure. Por sua vez, essa investigação reanimaria o debate entre Lacan e Lévi-Strauss acerca da psicanálise ser ou não baseada em uma eficácia mágica. Poderíamos ainda abrir outra linha para reconsiderar o conceito lacaniano de real como impossível à luz da obra de Febvre, pois, além de Koyré, o historiador também propôs o impossível como o que é impensável a partir de certo quadro de ideias.

Enfim, grandes problemas que deixam no ar várias perguntas que exigem o trabalho colaborativo entre colegas da psicanálise e de outras disciplinas. Em todo caso, acredito que o momento é propício para novas aventuras intelectuais e que o sinal ainda não soou para os discípulos entrarem na sala de aula.

Hudson Andrade, Porto Alegre, 1 de agosto de 2022.


[1] BLOCH, M. A apologia da história. Rio de Janeiro: Zahar, p. 79

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