Uma breve história sobre os encontros entre Lacan e Koyré

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Alexandre Koyré nasceu em 1892 na cidade portuária de Taganrog, no sul da Rússia. Aos dezessete anos ingressou na Universidade de Göttingen para estudar matemática e filosofia, onde foi aluno de Edmund Husserl, David Hilbert, entre outros. Nesse período, os trabalhos do autor versavam sobre as áreas da teoria dos conjuntos e dos paradoxos gregos. Aos dezenove anos, tentou ingressar no doutorado para pesquisar os paradoxos de Zenão, sob orientação de Husserl, mas acabou sendo recusado.

Com o fim da Primeira Guerra Mundial, Koyré defendeu na cidade de Paris sua tese de doutorado sobre o filósofo e místico alemão Jacob Boehme. Entre os anos de 1922 e 1931, Koyré foi contratado para lecionar na Vª sessão da École Pratique des Hautes Études (EPHE), vinculada ao estudo das Ciências Religiosas. Nesse período, suas pesquisas eram voltadas ao estudo da história do misticismo especulativo de autores, sobretudo de língua alemã, do século XVI. Nesse momento, Koyré possui interesse pelo pensamento místico e religioso de Copérnico, só depois o astrônomo polonês será relançado em seus estudos de história do pensamento científico

No ano letivo de 1926-27 e depois de 1932-33, Koyré abordou o universo da filosofia hegeliana da religião em suas aulas sobre história do pensamento místico e religioso. Desses cursos saíram três artigos que homenageavam os cem anos da morte do filósofo alemão[1]. No primeiro, em 1930, Koyré faz um relatório sobre o que chama de magro e pobre estado dos estudos de Hegel no solo francês, explicando que não se formou no país uma escola hegeliana tal como ocorreu na Alemanha, Inglaterra e Itália. No segundo, em 1931, faz uma análise da terminologia hegeliana, na qual defende que Hegel é difícil por causa da riqueza e concretude da linguagem que empregou, não por causa de sua suposta abstração. No terceiro, em 1934, Koyré valoriza os textos do jovem Hegel de Iena, com o objetivo de explicitar uma filosofia hegeliana caracterizada pelo tempo, movimento e inquietude do ser.

Entre os frequentadores das aulas de Koyré, estava seu amigo e compatriota russo Kojève, que se instalara na cidade no ano de 1926. No fim do ano de 1933, Koyré é chamado para lecionar como professor-convidado na Universidade do Cairo e indica o nome de Kojève para substitui-lo nas aulas sobre Hegel. O resto da história conhecemos bem, os famosos seminários dados por Kojève entre os anos de 1933-39 receberam como público grande parte dos intelectuais franceses. Passaram por lá Georges Bataille, Merleau-Ponty, Jean Hyppolite, André Breton e, claro, Jacques Lacan.

Talvez o que possamos não conhecer tão bem é o tamanho da dívida que Kojéve declara ter com as lições recebidas de Koyré. A respeito do contato com Hegel antes de suas lições, Kojève comenta: “tratei de ler Hegel. Li quatro vezes, na íntegra, a Fenomenologia do Espírito. Não entendia uma única palavra”[2]. Sobre o texto de Koyré, publicado em 1934, Kojève anuncia que se trata de um “artigo decisivo, fonte e base da minha interpretação da Fenomenologia”[3]. Portanto, podemos considerar que os seminários de Kojève buscam seguir o programa de leitura iniciado com Koyré, cuja chave para entrar no labirinto da filosofia hegeliana era tratá-la como uma filosofia do tempo.

Koyré fundou o anuário Recherches Philosophiques, primeira revista de filosofia da geração entre guerras, cujo espaço era consagrado à divulgação das novas tendências filosóficas e à introdução da filosofia alemã na França, contando com textos de Edmund Husserl, Martin Heidegger, entre outros. Henri Ey publicou, na edição de 1933-34, uma resenha da tese recém lançada de Lacan. Na edição de 1935-36, o próprio Lacan publicou na revista um artigo dedicado ao livro Le temps vécu de Eugene Minkowski.

Com o eclodir da Segunda Guerra Mundial, Koyré foi enviado para lecionar na New School for Social Research, na cidade de Nova York, onde participou da fundação da École Libre des Hautes Études (ELHE). Na mesma instituição, Roman Jakobson e Lévi-Strauss também eram professores que davam aulas durante o exílio. Koyré foi o responsável por proporcionar o encontro de ambos, depois que o etnólogo comentou que estava procurando por “essa noção de estrutura que os linguistas haviam elaborado”[4]. Com o fim de mais uma guerra, Koyré realizou, no ano de 1949, um jantar que resultou também no encontro entre Lacan e Lévi-Strauss. Ninguém poderia prever, mas o filósofo e historiador russo articulou sem saber os autores da futura moda intelectual parisiense, cuja imprensa da década de cinquenta chamaria de estruturalismo.

Hudson Andrade, Porto Alegre, 11 de março de 2022.


[1] Ambos estão publicados e traduzidos em português no Estudos de História do Pensamento Filosófico de Koyré.

[2] KOJÈVE, A. Entrevista a Alexandre Kojève: los filósofos no me interesan, busco a los sabios. Em: El emperador Juliano y su arte de escribir. Buenos Aires: Grama ediciones, 2003, p. 8.

[3] KOJÈVE, A. Introdução à leitura de Hegel. Rio de Janeiro: Contraponto, 2014, p. 347.

[4] JORLAND, Gérard. La science dans la philosophie: Les recherches épistémologiques d’Alexandre Koyré. Paris: Gallimard, 1981, p. 23.

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