A descoberta de Freud, segundo Lacan, consistiu em ter demonstrado que existem nas conversões histéricas, nos rituais obsessivos e nas aversões fóbicas pensamentos tão bem articulados quanto qualquer pensamento consciente, mas que o próprio indivíduo não pode ser atribuído como sendo o seu agente. O nascimento da psicanálise ocorre na inversão do “eu falo”, “eu penso”, “eu sei” pelo “isso fala”, “isso pensa”, “isso sabe” à revelia da minha própria intencionalidade. Lacan batiza essa descoberta dizendo que o inconsciente é o discurso do Outro. Porém, o mestre francês não teria errado seus cálculos em cem anos ao menos, não reconhecendo Rousseau como o verdadeiro inventor dessa descoberta?
Tudo começa com Montaigne tentando responder ao “o que sei eu?”. Depois de procurar em si mesmo por algum critério certo e firme, sua conclusão é que não existe no “eu” nada além de incerteza, confusão e vazio. Descartes rebate o ceticismo de Montaigne afirmando ter encontrado em si mesmo um alicerce suficientemente firme, segundo o qual, inclusive, poderia servir como base de sustentação ao edifício da nova ciência: “penso, logo existo”. Rousseau replica Descartes questionando: “pois bem, então, que sou eu?”. As dez meditações do autor que foram publicadas em Os devaneios do caminhante solitário circulam inteiramente em torno da pergunta “o que sou?”.
Ao longo da vida, Rousseau passou do período de grande popularidade e prestígio em relação ao círculo intelectual francês para outro marcado por isolamento e hostilidade recebida por parte de católicos, protestantes, monarquistas e aristocratas, em razão dos pensamentos expressos nas obras Emílio e O contrato social. Neste momento, Rousseau se sente perseguido pelos homens na cidade e decide buscar exílio no campo, é isolado de todos que resolve se entregar ao diálogo interior em suas meditações.
Nas meditações que eram realizadas em passeios solitários nos bosques, o único método empregado consistia em simplesmente falar sobre os episódios aparentemente mais insignificantes antes de pensar, de modo que somente um exame posterior pudesse permitir estabelecer os elos de ligação. Na segunda de suas meditações, Rousseau começa relatando uma lembrança de ter caído de cabeça no chão e ficado inconsciente depois que foi atropelado por um enorme cão dinamarquês. Enquanto recobrava a consciência, o autor afirmava não ter nenhuma lembrança ou qualquer noção de quem era, apenas conseguia sentir um estranho estado de calmaria e quietude. Contudo, em poucos dias, o boato do acidente se espalho por toda cidade de Paris com inúmeros acréscimos e alterações, sem que Rousseau pudesse ser esclarecido o que realmente ocorreu ao público geral. No segundo momento, enquanto reflete sobre o acontecimento, Rousseau diz concluir que sua reputação sempre esteve fixada pela opinião pública independente do que fizesse para tentar mudá-la, de modo que não conseguia retirar da cabeça que todos no mundo estavam armando um grande complô contra sua pessoa.
Como essa meditação, todas que estão presente n’Os devaneios do caminhante solitário seguem rigorosamente os passos do método chamado depois por Freud de associação livre, fazendo com que o conjunto da obra seja uma espécie de protótipo de sessões de análise. No mesmo caminho percorrido pelo fundador da psicanálise posteriormente, Rousseau oferece como resposta que “algo pensa em mim” e me faz duvidar se sou “eu” realmente o agente responsável pelos pensamentos que ocorrem.
Contudo, não creio que precisamos tratar Rousseau como o precursor de Freud, o que nos faria cair na armadilha historiográfica de compreender o antes com o depois. Acredito que o mais correto seja que ambos autores participaram da construção da subjetividade ocidental moderna, cujo destino desde sua origem é jamais conseguir ser reduzida à noção simplista de indivíduo.
Hudson Andrade, Porto Alegre, 10 de janeiro de 2022.