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Por inverossímil que possa parecer, ninguém tinha ensaiado até então uma teoria geral dos jogos. Os babilônios não são especulativos. Acatam os ditames do acaso, entregam a ele a vida, a esperança, o terror pânico, mas não lhes ocorre investigar as leis labirínticas, nem as esferas giratórias que o revelam.
Jorge Luis Borges, A loteria na babilônia.
Depois de uma temporada de relativa produtividade em que Lacan realizou mais de 20 intervenções, incluindo artigos e palestras, entre 1926 e 1938, o autor atravessou os anos da Segunda Guerra Mundial sem deixar nenhuma contribuição científica. O estado de silêncio apenas foi suspenso em 1945. Nesse ano, Lacan publicou na revista de arte e literatura Cahiers d’Art o artigo “Le temps logique et l’assertion de certitude anticipée: un nouveau sofisme”. Esse artigo marcou uma ruptura com seus trabalhos anteriores em psiquiatria e neurologia, visto que buscava oferecer uma análise lógico da interação subjetiva[1].
No artigo “Le temps logique”, Lacan propõe um desafio à lógica clássica por meio do qual busca integrá-la ao tempo intersubjetivo da ação humana. A pretensão do artigo se resume em fornecer uma lógica temporal da interação humana e sugere que sua aplicação seja utilizada nos jogos de mesa, na diplomacia, no manejo clínico da psicanálise e nos fenômenos de massas.
O enunciado do problema
O artigo começa com o diretor da prisão chamando três prisioneiros para uma sala e anunciando como prêmio libertar o primeiro que conseguisse vencer um jogo. Ele informa que existem cinco discos no total, em que três são brancos e dois são pretos, dos quais três serão sorteados ao acaso e colocados nas costas de cada um deles. O primeiro prisioneiro que conseguir deduzir qual cor de disco possui apenas observando o disco colocado nos outros dois deverá sair da sala e justificar em termos lógicos como chegou na conclusão.
Assim, os três prisioneiros concordam em participar e o diretor da prisão coloca um disco branco nas costas de todos sem que tenham conhecimento. A partir de tal configuração, qual será o desfecho do jogo? A solução perfeita sugerida por Lacan diz que depois de transcorrido certo intervalo de tempo em que os três prisioneiros inspecionaram uns aos outros e esboçaram alguns passos juntos, todos sairam simultaneamente e forneceram uma explicação semelhante. Ela se expressa da seguinte maneira:
Sou branco, e eis como sei disso. Dado que meus companheiros eram brancos, achei que, se eu fosse preto, cada um deles poderia ter inferido o seguinte: ‘Se eu também fosse preto, o outro, devendo reconhecer imediatamente que era branco, teria saído na mesma hora, logo, não sou preto’. E os dois teriam saído juntos, convencidos de ser brancos. Se não estavam fazendo nada, é que eu era branco com eles. Ao que saí porta afora, para dar a conhecer minha conclusão.[2]
Os estados de mundo possíveis
A princípio é importante observar que o diretor da prissão desempenha um papel importante, pois anuncia que exitem 3 discos brancos e 2 discos pretos distribuídos na partida. Dessa forma, o diretor informa que os estados de mundo possíveis são dois discos brancos e um disco preto (3/7), dois discos pretos e um disco branco (3/7) e três discos brancos (1/7).
A informação do diretor torna público que ao menos um dos três prisioneiros carrega um disco branco consigo, ou seja, todos poderiam estar portanto disco preto com exceção de menos um[3]. Na ausência dessa informação, todos cairiam fatalmente em uma situação de indeterminação sem conseguir distinguir qual cor de disco possuíam. Vejamos primeiro o que ocorreria na ausência da informação do diretor.
Chamemos os três prisioneiros de A, B e C. E, em seguida, nos coloquemos, por exemplo, no ponto de vista do prisioneiro A. Na ausência do enunciado do diretor, A vê que B e C estão portando um disco branco cada. Portanto, sabe que dois ou três prisioneiros estão portando discos brancos. O prisioneiro A sabe também que B e C veem um ou dois discos brancos. Entretanto, o raciocínio de A não permite que seja determinado como os discos estão distribuídos e, consequentemente, qual cor de disco carrega. Como consequência, o prisioneiro A não consegue distinguir se se encontra no estado de mundo 1 ou no estado de mundo 7. Da mesma maneira, assim como A, os prisioneiros B e C também caem em uma situação de indeterminação acerca da cor de seus próprios discos.
O enunciado do diretor torna público que pelo menos um dos discos brancos está sendo usado pelos três prisioneiros. Embora tal enunciado pareça trivial, pois os prisioneiros podem constatá-lo simplesmente olhando uns aos outros, é o que permite que ambos desenvolvam um cálculo lógico com o objetivo de conjecturar em qual estado de mundo estão e possam definir qual cor de disco carregam.
No entanto, embora o enunciado do diretor seja necessário para o desenrolar da partida, não é suficiente para os prisioneiros resolverem o problema que lhes foi colocado. Isso acontece porque o enunciado só poderia ser conclusivo caso o estado de mundo no qual os prisioneiros se encontrassem fosse constituído por dois discos pretos e um disco branco. Para observamos como essa última situação se desenvolveria, nos coloquemos novamente no ponto de vista do prisioneiro A.
O prisioneiro A não sabe sua própria cor de disco e vê que existem dois discos pretos nas costas dos prisioneiros B e C. Nesse caso, em razão de existirem apenas dois discos pretos, o prisioneiro A não duvidaria um único instante que possui um disco branco e sairia para afirmar sua conclusão. Na presença de dois discos pretos, o prisioneiro A possui uma certeza imediata de estar no estado de mundo 5 e sai com o objetivo de afirmá-la.
Se qualquer um dos três prisioneiros se deparassem com dois discos pretos, o tempo da partida não demoraria mais do que o mero instante do olhar. A certeza imediata é relacionada por Lacan ao raciocínio linear presente na lógica clássica, pois o encadeamento formado por condição (prótase) e consequência (apódose) pode ser inferido com um único golpe de vista e não depende do tempo. “Se dois pretos, logo, sou branco”. Lacan acrescenta que o sofisma dos três prisioneiros representa uma aporia à lógica clássica justamente porque não se conforma a causalidade linear que sai da premissa X à conclusão Y. Ele só é solucionável porque o tempo é acrescido como fator externo e constitutivo ao processo lógico espacializado.
No sofisma dos três prisioneiros e distinto da situação descrita acima, o ato de saída dos prisioneiros não decorre do excesso de certeza adquirida de antemão, mas dos sucessivos episódios de dúvida acerca de uma certeza que apenas se confirma no ato de saída. Em outros termos, invertendo o raciocínio linear presente na lógica clássica, saímos da conclusão Y para só depois chegarmos na premissa X. Em razão dessa estrutura espacial e temporal, Lacan utiliza o termo “certeza antecipada” ao invés de “certeza imediata” no título do artigo. Para verificarmos tal operação com mais detalhe, voltemos para o problema colocado ao prisioneiro A quando se encontra na presença de dois discos brancos.
De pressa, de pressa, o tempo exige!
O jogo começa com todos os três prisioneiros parados na sala. O prisioneiro A não sabe sua própria cor de disco e observa que os prisioneiros B e C carregam um disco branco cada um. Nesse momento, o prisioneiro A acrescenta uma hipótese suplementar em relação aos dados que vê: “se eu fosse um preto…”. A hipótese de possuir um disco preto é acompanhada por uma série de raciocínios especulares em que o prisioneiro A se coloca no ponto de vista dos outros dois com o objetivo de experimentar virtualmente seus pensamentos e suas ações. Assim, o prisioneiro A supõe que carrega um disco preto e se imagina pensando o pensamento dos outros dois prisioneiros.
Primeira conjectura de A: se eu carregasse um disco preto e se o prisioneiro B, não sabendo qual cor de disco possui, visse mais um disco preto no prisioneiro C, então, o prisioneiro B concluiria que possui um disco branco e, assim, sairia agora da sala para anunciar sua conclusão. Logo, o prisioneiro A confirmaria sua hipótese de possui um disco preto e concluiria estar no estado de mundo 6. Contudo, como o prisioneiro A observa que o prisioneiro B não se move, pode concluir que não estão nesse estado de mundo e precisa refazer seu raciocínio. Essa primeira situação (S1) se incorpora no processo lógico como primeiro tempo ou tempo zero (T1).
Segunda conjectura de A: se eu carregasse um disco preto e se o prisioneiro C, não sabendo qual cor de disco possui, visse o prisioneiro B parado na sala, então, o prisioneiro C concluiria que o prisioneiro B não viu dois discos pretos e, assim, sairia da sala alguns instantes após o começo do jogo para anunciar sua conclusão de possuir um disco branco. Logo, o prisioneiro A confirmaria sua hipótese de possuir um disco preto e concluiria estar no estado de mundo 1. Contudo, como o prisioneiro A observa que o prisioneiro C não se move, pode concluir que não estão nesse estado de mundo e precisa mais uma vez refazer seu raciocínio. Essa segunda situação (S2) se incorpora no processo lógico como segundo tempo (T2).
Terceira conjectura de A: se os prisioneiros B e C vissem um disco preto nas minhas costas, ambos poderiam pensar que o outro não se moveu porque não viu mais um disco preto e, assim, os dois sairiam juntos acreditando ter um disco branco; porém, como os dois não saíram da sala mesmo depois de muito tempo do começo do jogo, então, eu posso concluir que não carrego um disco preto e todos possuem um disco branco. Assim, o prisioneiro A corrige sua hipótese inicial de possuir um disco preto, pois chega na conclusão de estar no estado de mundo 7. Essa terceira situação (S3) se incorpora no processo lógico como terceiro tempo (T3).
Nessa etapa do jogo, o prisioneiro A esbara em uma indeterminação gerada por duas possibilidades divergentes que surgiram de suas conjecturas. Por um lado, A pensa que se possuísse um disco branco e não um disco preto como supôs anteriormente, então, os prisioneiros B e C não precisaram gastar o mesmo tempo no exame lógico e estariam prontos para sair da sala. Nesse caso, os dois prisioneiros chegaram em S3 no T2 e o prisioneiro A ficará para trás caso saia tarde demais para anunciar que possui um disco branco. Por outro lado, A pensa que se os prisioneiros B e C continuam parados, talvez o façam porque precisaram de mais tempo no exame lógico e podem estar até o momento pensando sobre qual cor de disco possuem segundo o disco preto que viram em suas costas. Nesse caso, os dois prisioneiros ainda estão em S2 no T2 e o prisioneiro A pode cometer um equívoco caso saia cedo demais para anunciar que possui um disco branco. Em suma, como o prisioneiro A não pode objetivar o tempo necessário para os outros dois realizarem o exame lógico, não há como saber se estão parados por ainda estarem pensando em S2 no T2 ou se estão prontos para sair por já terem chegado em S3 no T2.
O prisioneiro A não pode se mover cedo demais e cair no equívoco ou tarde demais e ser ultrapassado pelos outros. Contudo, caso decida esperar mais tempo para se certificar que os outros concluíram o exame lógico, correrá o risco de ser deixado para trás e impedido de declarar sua conclusão. Nesse momento, sua decisão deriva da seguinte hipótese: “se eu tivesse um disco preto, os dois prisioneiros que possuem um disco branco levariam algum tempo para sair da sala, porém, certamente não esperariam tanto tempo quanto já esperei”. A urgência gerada pela relação intersubjetiva faz com que o prisioneiro A se apresse para declarar um julgamento no qual possui boas razões, embora não suficientes. Sua conclusão consiste em uma aposta fundada em uma possibilidade virtual cuja certeza é apenas subjetiva.
O prisioneiro A possui o tempo de compreender limitado pela possibilidade de que sua própria demora em concluir faça com que os outros dois prisioneiros saiam na frente e lhe convençam de ter um disco preto, contradizendo o que conjecturou anteriormente. A pressa em concluir assegura que não seja induzido ao erro pelos outros dois prisioneiros[4]. Assim, o prisioneiro A se precipita em direção à saída para anunciar ao diretor da prisão que possui um disco branco e, enquanto avança, observa estar acompanhado pelos outros dois. Como seu raciocínio dependeu do tempo de parada dos dois, o fato de ambos se moverem no mesmo instante faz com que se instale uma dúvida. Ele se pergunta: “será que calculei mal o tempo de parada e os dois prisioneiros marcham comigo porque estamos em S2 e viram um disco preto nas minhas costas?”. Dessa maneira, o prisioneiro A suspende seus passos em razão da incerteza sobre sua própria conclusão. E assim, no instante em que detém o seu movimento no centro da sala, todos os outros também param.
A segunda parada simultânea de todos os três prisioneiros inaugura uma segunda rodada na partida. Nessa situação, é razoável perguntar se o jogo terminará em algum momento ou se entrará em loop com ambos prisioneiros realizando sucessivos avanços e paradas. É possível dizer que o jogo não se estenderá de maneira indefinida graças ao progresso lógico que foi obtido como saldo da primeira rodada. Em outros termos, duas rodadas são necessárias e suficientes para concluir uma partida entre três participantes. Para nos certificarmos do resultado, voltemos ao jogo entre os três prisioneiros.
End game
A segunda rodada reabre o tempo de compreender para o prisioneiro A. Porém, dessa vez, basta que revise os passos lógicos anteriores para chegar na conclusão definitiva. Na primeira rodada da partida, sua conjectura foi de que nenhum dos outros prisioneiros saiu no começo do jogo porque ninguém viu imediatamente dois discos pretos, restava saber se haveria um disco preto em suas costas. Ele deduziu que os outros dois prisioneiros já teriam saído caso vissem um disco preto, mas sua conclusão de possuir um disco branco derivava apenas de uma certeza subjetiva. Mesmo assim, o prisioneiro A se apressou para anunciar sua conclusão, porém, ao observar que ambos se moveram simultaneamente, seu pensamento mergulhou na dúvida e sua ação caiu na hesitação por não saber se interpretava o movimento dos outros como o sinal de ter um disco preto.
Logo após deter seus passos e observar que os outros dois também pararam, o prisioneiro A pensa: “eu corri o risco de anunciar uma conclusão baseada na hipótese de que meus adversários continuavam parados porque não viram um disco preto em mim, mas, ao vê-los se movendo, hesitei em declará-la porque naquele momento me convenceram de estar errado; porém, só agora que os vejo parando uma segunda vez, eu compreendo que estava certo pois ninguém pararia novamente se houvesse um único disco preto distribuído entre nós”. Assim, possuindo não só uma certeza subjetiva, mas uma conclusão inequívoca às suas conjecturas, o prisioneiro A caminha mais uma vez rumo à saída e observa novamente estar acompanhado, mas, dessa vez, ninguém detém seus passos com dúvida ou remorso.
A lógica temporal do significante: ou torna-te quem tu és!
A solução encontrada pelos três prisioneiros se mostra distante da maneira como os problemas são resolvidos na lógica clássica, cujo processo espacializado de maneira linear começa nos dados fornecidos nas premissas e termina na verdade eternamente válida. Certamente os prisioneiros não resolveram o problema que lhes foi colocado graças unicamente ao dado dos dois discos brancos vistos, não percorreram o exame lógico de maneira linear e tampouco obtiveram uma verdade que passasse ilesa ao processo do tempo. Porém, o resultado constitui um raciocínio lógico sólido quando incluímos o papel exercido pelas duas paradas ou escansões suspensivas.
A expressão “asserção da certeza antecipada”, colocada no título do artigo, busca justamente destacar o aspecto temporal presente no processo lógico, contudo, sua complexidade se extravia caso não seja observada qual estrutura possui. A estrutura temporal presente na narrativa do “Le temps logique” não corresponde com o passado rígido que funciona como uma condição inevitável em relação àquilo que ocorrerá (serei um branco) ou com o projeto futuro que serve como uma consequência determinada em relação àquilo que ocorreu (fui um preto). Nesse caso, não parece de grande utilidade o ponto de vista oferecido pela relação causal e linear que sai do passado rumo ao futuro ou, vice-versa, do futuro rumo ao passado.
A princípio, é importante observar que o tempo de compreender da primeira rodada oferece apenas uma possibilidade virtual e incerta, cuja realização e confirmação só ocorre no momento de conclusão da segunda rodada. A asserção de ter um disco branco, realizada na primeira rodada, representa somente uma provável anunciação antecipatória para um futuro aberto em possibilidades, daí seu aspecto de incerteza. A conclusão de que ninguém poderia parar novamente se visse um disco preto, obtida na segunda rodada, retroage na asserção anterior lhe conferindo o valor de certeza. O ponto principal é não perder de vista o caráter inesperado e imprevisível que existe entre os dois momentos. A asserção da certeza antecipada adquire uma conotação de destino, finalidade e sentido somente quando o segundo momento conclui o primeiro, decretando que o alvo foi atingido.
O futuro anterior[5] pode ser utilizado como o tempo verbal mais propício para tornar inteligível o desenrolar completo da trama presente no “Le temps logique”. Ele se constitui por uma ação que ocorre no futuro, mas que é narrada como concluída em relação à outra ação futura. Nesse caso, seguindo o movimento simultâneo de antecipação e de retroação presente na asserção da certeza antecipada, teríamos: “quando o meu ato de saída decretar o que terei sido (branco), eu já não serei mais o que tenho sido (preto)”. A estrutura linear e continua do tempo se quebra em razão do presente que se projeta para o futuro aberto, representado na forma do terei sido, no qual, por sua vez, depende de outro acontecimento futuro que lhe é anterior, composto pelo tenho sido. O duplo movimento se sela na forma de um dever, uma tarefa ou uma exigência cuja realização adquire o tom de necessidade expressa na máxima de que é necessário abandonar o que se acreditava ser para torna-se o que não suspeitava que era.
A pretensão do artigo escrito por Lacan consistiu em oferecer uma abordagem da relação intersubjetiva que fosse orientada por uma lógica temporal. O interesse de unir lógica e tempo fez com que o artigo original fosse revisado anos mais tarde e tivesse alguns trechos alterados para destacar o papel ocupado já naquele momento pelo conceito de significante, criado posteriormente. Por exemplo, na versão original de 1945 lemos: “Muito pelo contrário, a função dos fenômenos aqui em litigio só pode ser conhecida em uma intuição temporal, e não espacial, do progresso lógico”[6]. Já na versão alterada para ser publicada nos Escritos, em 1966, encontramos: “Muito pelo contrário, a entrada em jogo como significantes dos fenômenos aqui em litigio faz prevalecer a estrutura temporal e não espacial do processo lógico”[7]. Observamos que, além de substituir progresso por processo, Lacan busca destacar que o conceito de significante se encontra localizado no cruzamento entre lógica e tempo. Essa referência possui como propósito oferecer uma abordagem não psicológica, mas lógica, ou melhor, uma abordagem lógico-temporal à psicanálise.
A lógica coletiva
No desfecho do sofisma dos três prisioneiros observamos que o desafio que começou como um jogo competitivo, com ares de guerra em que cada um buscava decifrar o mais rápido possível sua própria cor segundo os dados extraídos de seus adversários, transformou-se em um jogo cooperativo semelhante ao trabalho de uma equipe de remo cujos membros precisam cadenciar conjuntamente seus respectivos movimentos (no caso, suas respectivas imobilidades). Além disso, existem também três formas de subjetivação segundo cada umas das etapas na partida.
A primeira forma de subjetivação corresponde ao sujeito impessoal. Essa forma se compõe na situação em que qualquer um dos prisioneiros vê dois discos pretos. Nesse caso, o exame lógico se comprime no instante de olhar e se encerra em uma conclusão impessoal: “dois discos pretos, logo, sabe-se branco”. O raciocínio lógico ocupa todo o protagonismo e o tempo se encontra excluído do exame. A afirmação de que o fator temporal não se encontra presente na lógica pura não significa que o lógico não precise de tempo para solucionar um problema difícil, mas que o modo de obtenção da verdade independe de sua própria pressa e hesitação em resolvê-lo.
A segunda forma de subjetivação corresponde ao sujeito recíproco. Essa forma se compõe na situação em que qualquer um dos três prisioneiros, impossibilitado de declarar uma asserção sobre si mesmo, depende do outro enquanto instância mediadora. A subjetividade se encontra pautada por uma outra de modo que Um (a) depende da relação de reciprocidade com Outros (a’) para reconhecer o seu próprio atributo. No sofisma dos prisioneiros, encontramos três situações distintas que se configuram no plano da relação recíproca entre os membros do coletivo.
Em primeiro lugar, cada um dos três prisioneiros precisa se valer do atributo observado nos demais para formular uma primeira hipótese sobre si próprio, porém, ao invés de ocorrer o reconhecimento fundado na identidade (todos somos brancos), cada um usa como ponto de partida se distinguir dos outros membros do coletivo (sou o único preto). Embora essa etapa seja superada posteriormente, o jogo começa segundo o paradigma representado pela figura daquele que se acredita como última bolachinha do pacote ou como persona non grata no grupo.
Em segundo lugar, visto que não há nenhuma maneira de objetiva o tempo necessário para os outros dois prisioneiros concluírem o exame lógico, cada um precisa apressar seus passos para não ser levado ao erro e ao equívoco de suas próprias conjecturas em virtude da saída precoce dos concorrentes. Nesse momento do jogo, emerge o sentimento de que os outros podem me induzir ao engano e, simultaneamente, se instala o ambiente de rivalidade em que cada um precisa se mover o mais rápido possível em relação aos demais.
Finalmente, todos os três prisioneiros pararam na primeira rodada da partida porque uns aos outros se convenceram de estarem errados sobre suas respectivas conjeturas, graças ao movimento simultâneo de saída. Na ação de causalidade mútua presente na primeira parada ou primeira escanção suspensiva, todos os participantes subordinam suas próprias conclusões de acordo com o que evidenciam na conclusão dos outros. A primeira rodada do jogo obtém como saldo um coletivo de maria-vai-com-as-outras no qual todos se induziram mutuamente ao equívoco. É importante observar também que poderia existir outro desfecho no jogo, chamemos de solução imperfeita, com um dos prisioneiros se movendo apenas por causa do movimento dos outros dois e declarando ter um disco preto nas costas.
A terceira forma de subjetivação corresponde ao sujeito da asserção. Essa forma emerge em meio ao ambiente de concorrência e de rivalidade deflagrado no seio do vínculo imaginário formado pelo par (a–a’). É importante notar que cada prisioneiro não se move por causa do medo de perder o prémio de ser liberto, senão que o movimento dos outros faça com que seja levado ao erro. A coragem do sujeito (S) em correr o risco de declarar uma asserção sobre si, cuja comprovação prévia não existe, advém da possibilidade de que sua própria inércia em sair contradiga suas hipóteses. A certeza da asserção sobre si, que era apenas subjetiva na primeira rodada do jogo, torna-se objetivada ou dessubjetivada ao máximo na segunda rodada, tal como uma evidência integralmente fundada e captada no instante de olhar: “duas paradas, logo, nenhum disco preto”. Em razão da relação entre erro e verdade presente no sofisma, Lacan comenta que o sujeito da asserção adquire sua forma pessoal justamente no sujeito do conhecimento.
Assim, o jogo entre os três prisioneiros se estrutura como um circuito constituído pelos dados observados e por suas regras (A), pelo casal imaginário (a–a’) e, finalmente, pelo sujeito da asserção (S).
[1] Embora publicado no ano seguinte na mesma revista, o artigo “Le nombre treize et la forme logique de la suspicion” foi escrito antes. O problema levantado no texto se insere no campo das matemáticas recreativas. Podemos dizer que os artigos “Le temps logique” e “Le nombre treize” inauguram o interesse de Lacan pela abordagem formal da lógica e da matemática como uma forma de contribuição à psicanálise.
[2] Lacan, J. O tempo lógico e a asserção da certeza antecipada. Em: Escritos, 1998, p. 198.
[3] É importante destacar o papel desempenhado pela função do “menos um” ou do “mais um” no pensamento lacaniano acerca da lógica coletiva, por exemplo, no dispositivo do Cartel teríamos 3 + 1.
[4] É interessante observar que Lacan relaciona o que chamou no artigo como forma ontológica da angústia com o momento no qual o sujeito, depois de formular uma primeira asserção sobre si, demore em declará-la e seja convencido pelos outros do contrário.
[5] Em português teríamos o futuro do presente composto do indicativo.
[6] “Tout au contraire, la fonction des phénomènes ici en litige ne peut reconnue que dans une intuition temporelle, et non spatiale du procès logique”. Le temps logique, versão original de 1945, p. 35.
[7] “Tout au contraire, l’entrée en jeu comme signifiants des phénomènes ici en litige fait-elle prévaloir la struture temporelle et non pas spatiale du procès logique”. Le temps logique, versão de 1966, p. 203.