O sujeito imortal: mais do que corpos e linguagens, verdades

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“Cuida daquilo que nasce. Questiona os grandes brilhos, sonda seu passado sem glória. Não podes ter esperança senão do que fracassou”.

O filósofo Alain Badiou considera que o pensamento hegemônico presente em nosso mundo pode ser resumido no seguinte axioma: só existem corpos e linguagens. Tal axioma expressa, por um lado, que o horizonte subjetivo vigente reconhece como vida apenas o que se encontra circunscrito na figura do animal-humano, com suas taxas de nascimento e morte controladas pelo Estado e sua necessidade de consumo regulada pelo mercado. E, por outro lado, exige-se do cenário em vivemos o gradativo alargamento taxonômico da variedade de subespécies reconhecidas, com seus diversos sexos, cores, crenças e costumes. As possibilidades no mundo se encontram, assim, limitadas por um materialismo contemporâneo, seja pelo viés da biopolitica, do mercado de consumo ou do multiculturalismo.

Definimos o que é vida segundo os corpos que são individualizados e agrupados com os seus semelhantes. Porém, Badiou acrescenta uma torção no primeiro axioma ao afirmar que: “só existem corpos e linguagens, exceto que existam verdades”[1].  O “exceto” não indica que verdades surgem como suplemento adicional aos corpos e linguagens já existentes, mas que aparecem como uma extrapolação do que até o momento estava colocado no interior das condições de possibilidade no mundo. Sob o nome de verdades se designa que no mundo existem mais elementos do que o próprio mundo parece conter.

Nosso filósofo fala em verdades no plural pois não considera que exista um campo exclusivo que seja responsável por produzi-las, ao contrário, prefere dar destaque aos processos que se desenvolvem nos campos da política, do amor, da arte e da ciência. A verdade que surge em cada um dos campos depende da fidelidade na qual os indivíduos envolvidos se engajam em algo que não possui nenhuma garantia prévia.

A produção de uma verdade é um processo imanente que nasce de uma aposta afirmada e reafirmada, seja no caso da atuação política do militante, do voto de amor do apaixonado, do experimentalismo do artista plástico ou da formulação de hipóteses do cientista. Em cada um dos respectivos campos, é somente de maneira retroativa que se inscreve um acontecimento capaz de separar o antes em relação ao depois.

O acontecimento vincula-se com o futuro na medida em que o presente realiza uma aposta sobre um traço do passado que já não é mais o mesmo. Apesar de possuir um caráter contingente, depois de ser incorporado ao mundo, o acontecimento se inscreve como se não pudesse ter ocorrido de outra maneira.

É importante destacar que, embora estejamos falando em verdades, não estamos posicionados no terreno do relativismo. A atuação política adquire sentido quando consegue transpor o plano do militante e atinge uma organização política, os votos do apaixonado são concretizados quando são encarnados na forma de um casal, o experimentalismo do artista cumpre o seu objetivo quando consegue produzir uma reconfigurar na percepção estética coletiva e o conjunto de teses do cientista são validadas quando sua evidência pode ser compartilhada com outros pesquisadores. Em ambos os casos, o modo de aparecer de uma verdade nunca é atestado por um único indivíduo, pois sua natureza é genérica e mobiliza uma nação, um par, um coletivo ou uma comunidade.

A verdade produzida em determinada situação local e particular possui o poder de extrapolar o próprio espaço no qual nasceu e remeter para diferentes contextos históricos e geográficos. A mobilização de uma organização política responde aos fracassos e sucessos de outras experiências, o amor compartilhado pelo casal pode ser reconhecido independentemente das configurações assumidas ao longo dos tempos, um estilo artístico dialoga com outras tendências estéticas e uma tese possui como pano de fundo soluções e impasses deixados por outras investigações. Nunca estamos sozinhos e tampouco vivemos apenas no meio que nos rodeia, compomos um elo de uma extensa corrente que se encadeia. A vida ordinária do indivíduo só acende à imortalidade do Sujeito na medida que consegue participar de uma verdade que lhe ultrapassa.

Badiou oferece uma perspectiva filosófica cuja verdade é pensada ao mesmo tempo de maneira subjetiva, pois depende da fidelidade de indivíduos, como também de forma objetiva, visto que extrapola o próprio indivíduo ao mobilizar um corpo de atores situados por vezes em regiões e tempos distintos. Na esteira da tradição platônica, passamos do subjetivo ao objetivo, do tempo ao intemporal, do particular ou universal. Porém, como falamos de um platonismo não ortodoxo, o lugar do Um é cedido à produção de verdades que são incorporadas em contextos múltiplos.

Certamente o mais curioso em tal aventura filosófica é que o seu próprio propulsor não é fornecido pela filosofia. A filosofia não é posta como o campo responsável pela produção de verdades, como é o caso da política, do amor, da arte e da ciência, seu papel consiste em dizer como os acontecimentos surgiram e como se tornam possíveis. Essa definição de filosofia encontra suas raízes no hegelianismo que lhe compreende como uma espécie de coruja de minerva cujo voo só ocorre ao entardecer ou ao término do acontecimento.

Badiou compreende que são alguns dos desdobramentos realizados pela matemática nas últimas décadas que permitiriam ao filósofo tornar pensável os acontecimentos que são produzidos em outros campos. Sobretudo através da teoria dos conjuntos, o discurso da matemática permite que se construa um pensamento em torno das multiplicidades e das condições sobre os processos, sem que sua indeterminação e consequências sejam limitadas. Assim, o discurso sobre ontologia deixa de ser realizado pelo filósofo e passa às mãos do matemático, embora o próprio não saiba que o faça.

Hudson Andrade, Porto Alegre, 25 de julho de 2019.


[1] No original encontramos: “Il n’y a que des corps et des langages, sinon qu’il y a des vérités”. Badiou, A. Lógica de los mundos: el ser y el acontecimiento, 2. Buenos Aires, Manantial, 2018, p. 20.

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