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Também estou convencido de que em dez anos no máximo, aquele que me lerá me achará extremamente transparente, como um belo copo de cerveja. Talvez até se diga então: “Esse Lacan, que banalidade!”
(Lacan em entrevista concedida no ano de 1974)
A propedêutica do ensino de Lacan
Podemos considerar o Discurso de Roma realizado em 1953 como uma espécie de manifesto lançado por Lacan com o objetivo de reorientar o curso da psicanálise segundo o caminho aberto pela linguística e antropologia estrutural. O psicanalista francês regressa à cidade eterna depois de quatorze anos declarando que o propósito em sua primeira conferência era renovar o status do inconsciente e convidar os psicanalistas para interrogarem juntos a prática analítica. Lendo seu trajeto de maneira retrospectiva, ele comenta sobre suas motivações nos últimos anos: “Digamos que me dediquei à reforma do entendimento, imposta por uma tarefa da qual um dos atos é engajar os outros”[1]. A intenção era produzir uma reforma intelectual entre os psicanalistas e oxigenar o ambiente através do programa de investigação divulgado no começo da década de cinquenta. Contudo, Lacan considera em 1967 que fracassou no projeto de retirar o campo analítico de sua estagnação.
A hipótese que gostaríamos de levantar é que o fracasso de Lacan pode ser explicado por sua tentativa de mudar o paradigma científico da psicanálise. A reforma intelectual visada foi por água abaixo porque seus pressupostos teóricos foram recusados pelos lacanianos. Para avaliarmos com mais detalhes os motivos desse fracasso precisamos realizar uma pequena incursão que envolve razões de ordem política e epistemológica sobre o movimento analítico.
Em solo francês o único instituto de psicanálise reconhecido como legítimo pela International Psychoanalytical Association (IPA), criada por Freud, era representado pela Sociedade Psicanalítica de Paris (SPP). Nesse instituto ocorreu uma cisão em 1953 relacionada à sua política de formação dos analistas, de onde surgiu outro instituto chamando de Sociedade Francesa de Psicanálise (SFP). A SFP é fundada sem o respaldo institucional da IPA por Françoise Dolto, Daniel Lagache, Jacques Lacan e seguido pelos jovens analistas em formação.
Lacan é responsável por inaugurar os trabalhos científicos da SFP no mesmo ano de fundação com sua conferência O simbólico, o imaginário e o real. Nesse momento, ele propõe tomar esses registros como essenciais da realidade humana e repensar o status do sintoma em análise como se possuísse estrutura de linguagem. Essa reorientação teórica implica em compromisso teóricos e ontológicos diferentes dos usados pelo fundador da psicanálise. O novo espírito científico também exigia que fosse reformulado o conjunto de disciplinas que contribuiriam para formar os próximos analistas.
Lacan criticava o programa de formação da IPA por não estabelecer como necessário o estudo das disciplinas colocadas pelo fundador da psicanálise como indispensáveis aos analistas. Freud[2] considerava vital o estudo da psicologia profunda, da biologia e dos quadros clínicos da psiquiatria, acompanhado da história das civilizações, mitologia, psicologia da religião e literatura. Lacan considerava outras disciplinas como indispensáveis à formação dos psicanalistas.
É de uma iniciação nos métodos do linguista, do historiador e, diria eu, do matemático que se deve tratar agora, para que uma nova geração de clínicos e pesquisadores resgate o sentido da experiência freudiana e seu motor. Ela há de encontrar meios também de se resguardar da objetivação psico-sociológica, onde o psicanalista, em suas incertezas, vai buscar a substância daquilo que faz, embora ela só lhe possa trazer uma abstração inadequada em que sua prática se atola e se desfaz. Essa reforma há de ser uma obra institucional, pois só pode sustentar-se por uma comunicação constante com disciplinas que se definam como ciências da intersubjetividade, ou pelo termo ciências conjecturais, expressão em que aponto a ordem das pesquisas que vêm fazendo alterar-se a implicação das ciências humanas. Mas tal direção só se manterá através de um ensino verdadeiro, isto é, que não pare de se submeter ao que se chama novação.[3]
Lacan compreendia que era necessário realizar uma reforma intelectual entre os analistas para surgir uma geração renovada de clínicos e pesquisadores. Para realizar essa façanha, era indispensável mudar o quadro de disciplinas exigidas na formação dos psicanalistas. Ele considera que suas bases deveriam vir do método do linguista, do historiador e do matemático. Essa reforma no ensino da psicanálise foi pensada como obra coletiva, cujos alunos ficariam encarregados de colocar seu campo em constante intercâmbio com outras áreas.
Lacan acreditava que o edifício teórico da psicanálise poderia ser revigorado caso se orientasse no caminho aberto pela antropologia de Lévi-Strauss e pela linguística de Jakobson. Com isso, ela conseguiria abrigo no âmbito das ciências conjecturais e despertaria do sono antropológico das ciências humanas. A inspiração platônica do inteligível sobre o sensível da experiência, tornaria possível conjecturar que existem estruturas articuladas segundo suas próprias leis, cujo funcionamento ocorre independente da intencionalidade do indivíduo. O trabalho realizado pelo linguista e pelo etnógrafo em suas análises da língua, dos mitos e das relações de parentesco permitiria também ao psicanalista repensar o próprio status do inconsciente.
É que a análise, por progredir essencialmente no não-saber, liga-se, na história da ciência, a seu estado anterior à sua definição aristotélica, que se chama dialética. Do mesmo modo, a obra de Freud, por suas referências platônicas, ou mesmo pré-socráticas, traz o testemunho disso. Mas, ao mesmo tempo, longe de ser isolada, ou mesmo isolável, ela encontra seu lugar no centro do vasto movimento conceitual que, em nossa época, reestruturando tantas ciências impropriamente chamadas de “sociais”, modificando ou resgatando o sentido de certos setores da ciência exata por excelência, a matemática, para restabelecer as bases de uma ciência da ação humana como fundamentada na conjectura, reclassifica, sob o nome de ciências humanas, o corpo das ciências da intersubjetividade.[4]
No começo da década de sessenta, a IPA concordou em reconhecer a SFP como um instituto de psicanálise contanto que Lacan deixasse de realizar seus seminários no hospital de Sainte Anne. Depois de ser afastado do espaço de formação dos analistas, o psicanalista pediu exílio para Louis Althusser, que lhe concedeu uma sala na École Normale Supérieure. Em sua primeira lição no novo local, Lacan[5] diz ter sofrido uma excomunhão do campo analítico e que estavam tentando anular o seu ensino. Ele estabelece que o assunto tratado no ano letivo seria dedicado aos Fundamentos da Psicanálise e lança uma série de perguntas: “a psicanálise é uma ciência?”, “a psicanálise é uma religião?” e “qual ciência incluiria a psicanálise?”.
No mesmo ano, Lacan funda seu próprio instituto de psicanálise chamando de Escola Francesa de Psicanálise (EFP). A escolha pelo termo “escola” é inspirado na Academia de Platão e no Liceu de Aristóteles, como lugar propício à circulação dos saberes. Na carta de fundação do instituto, Lacan dedica uma seção específica chamada de “recenseamento do campo freudiano”, que buscava incentivar os psicanalistas membros a manterem atualizada sua prática de acordo com os desenvolvimentos realizados em outras áreas.
Por último, ela [seção de recenseamento do campo freudiano] convocará, tanto para instruir nossa experiência quanto para comunicá-la, aquilo que, do estruturalismo instaurado em certas ciências, puder esclarecer aquele cuja função demonstrei na nossa – e, no sentido inverso, aquilo que, de nossa subjetivação, essas mesmas ciências puderem receber de inspiração complementar.[6]
As ciências baseadas na hipótese estrutural eram usadas como referência para o psicanalista ser instruído em sua prática e conseguir torná-la comunicável de maneira coerente e lógica. O programa de investigação da instituição exigia que a psicanálise estivesse sob constante interrogação segundo o trabalho produzido por outras disciplinas e também que pudesse devolver o resultado do intercâmbio para elas. A psicanálise é colocada sob incessante interlocução com outros domínios do saber.
No final da década de sessenta, foi criado o Departamento de Psicanálise na recém-inaugurada Universidade de Vincennes. Lacan[7] traça o conjunto de disciplinas que, segundo o seu ponto de vista, deveriam compor o currículo no ensino da psicanálise no âmbito acadêmico. Ele sugere o estudo da linguística, sob condição de que o vínculo entre fala e sentido passassem pelo crivo crítico da psicanálise[8]. Ele recomenda substituir o estudo da filosofia por antifilosofia. No lugar da lógica tomada como disciplina que constata o estatuto de verdade dos enunciados, ele propôs o seu uso como ciência do real. A psicanálise é interrogada em algum aspecto por cada disciplina e oferece algo como contraponto. A última disciplina indicada por Lacan foi o estudo da topologia, contudo ele diz que, até aquele momento, não havia nada na psicanálise para fornecer como resposta.
A partir da década de cinquenta, Lacan sempre manteve preservado o intercâmbio da psicanálise com os campos da linguística e da antropologia, ao contrário do rumor propagado entre os lacanianos de que o diálogo foi encerrado no começo da década de setenta. Em entrevista concedida nos Estados Unidos, em meados da década de setenta, Lacan sustenta: “a linguística é por onde a psicanálise poderia se agarrar à ciência”[9]. Na sequência é perguntado sobre o que deve ao trabalho de Lévi-Strauss, ele responde: “eu lhe devo muito, senão tudo. Isso não impede que eu tenha da estrutura uma noção totalmente outra do que a sua”[10]. A interlocução de Lacan com essas ciências possui uma constância em seu percurso intelectual, elas são responsáveis por indicar o caminho que o psicanalista poderia encontrar o vigor e o rigor científico de sua disciplina.
No começo da década de oitenta, Lacan resolve encerrar as atividades da EFP alguns meses antes de seu falecimento. Na carta de dissolução da Escola, ele comenta: “Falo sem a menor esperança de me fazer ouvir”[11]. O psicanalista francês morre não deixando de tentar se fazer ouvir pelas paredes.
O estranho caso do Sr. Freud
Lacan acredita que Freud conseguiu formular como ninguém antes que existem sintomas que sabem falar, mas que sua invenção soou simplicista demais aos seus discípulos. Por essa razão, os seguidores do fundador da psicanálise tiveram que procurar algo que possuísse mais concretude, buscando respaldo ora no naturalismo, ora no psicologismo. Na avaliação de Lacan, o nível de obsolescência dos pressupostos teóricos utilizados pelos psicanalistas não era comparável com nada encontrado em outras disciplinas.
Lacan criticava de maneira insistente os analistas por causa da total incompreensão das leis que estão em jogo na eficácia clínica. Os psicanalistas só seriam capazes de distinguir o que pauta sua prática caso fossem formados bons clínicos que também fossem bons teóricos. A respeito das dificuldades enfrentadas pelos psicanalistas em sustentar teoricamente o que exercem, Lacan comenta em sua conferência na Sociedade Francesa de Filosofia em 1957.
É nesse momento que vocês se voltariam para os praticantes, para lhes pedir que decidissem, tomados por sua experiência, quanto à substância da mensagem freudiana. Mas, ao simplesmente se referirem à literatura decerto abundante em que eles confrontam seus problemas técnicos, vocês teriam a surpresa de não encontrar nela nenhuma linha mais segura, nenhuma via de progresso mais decisiva.[12]
Nessa oportunidade, o psicanalista francês conversa com filósofos. Ele diz que, caso fossem pedir aos praticantes da psicanálise para falar sobre o valor do que foi transmitido por Freud, não encontrariam qualquer desenvolvimento muito seguro. Mais adiante, é insistindo na dificuldade do campo analítico em formular algo satisfatório em termos teóricos, enquanto seus praticantes se gabam sustentando uma perspectiva obsoleta de ciência.
Lacan considerava que o obstáculo produzido no campo analítico para realizar novas elaborações teóricas partiu do desejo de Freud. O fundador da psicanálise criou o dispositivo da IPA para ficar na incumbência de conservar sua invenção no envoltório puramente formal da técnica, anulando qualquer mudança drástica que saísse de seu parâmetro. A igreja formada pelo dispositivo garantia os rituais ecumênicos que deveriam ser realizados em uma análise autêntica, enquanto os fiéis preservavam a escritura sagrada do guia espiritual. Os pós-freudianos não realizaram nenhum desvio da obra do fundador da psicanálise, eles buscaram ser fidedignos ao texto.
Não há, com efeito, uma só balela proferida na mixórdia insípida que é a literatura analítica que não tome o cuidado de se apoiar numa referência ao texto de Freud, de tal sorte que, em muitos casos, se o autor não fosse também um afiliado da instituição, não se encontraria outra marca da qualificação [de psicanalista].[13]
Lacan satiriza que o tipo de relação mantida pela instituição da IPA com Freud reproduz metaforicamente o conto O estranho caso do Sr. Valdemar de Edgar Allan Poe. No final de sua existência, o Sr. Valdemar concordou em participar do experimento de ser hipnotizado para que os médicos pudessem investigar se essa técnica conseguiria produzir efeitos no prolongamento da vida. Depois de passar o prazo no qual sua morte estava prevista, o cadáver permaneceu respondendo aos estímulos e foi mantido em estado agonizante de sobrevida por sete meses ininterruptos. Eis como Lacan continua seu comentário: “Em tal caso, entretanto, a operação do despertar, conduzida com as palavras retomadas do Mestre numa ressurreição de sua Fala, pode vir a se confundir com o oferecimento de uma sepultura decente”[14]. Retomar o trabalho iniciado por Freud e revisar o que houve de inovador em sua invenção, mediante o posicionamento crítico, seria conferir uma sepultura digna ao fundador da psicanálise.
A palavra de ordem proferida por Lacan no começo da década de cinquenta com o seu “retorno a Freud” consiste em tomar uma direção contrária à adotada pelo movimento psicanalítico. Ela buscava resgatar o que houve de inovador no momento inaugural do trabalho freudiano. Todavia, o objetivo do programa não era regressar à pureza do que foi esquecido e deturpado pelas gerações posteriores, o que equivaleria ao retorno do recalcado, mas interrogar os princípios que regem o tratamento pela fala.
Não é de um retorno do recalcado que se trata para nós, mas de nos apoiarmos na antítese constituída pela fase percorrida desde a morte de Freud no movimento psicanalítico, para demonstrar o que a psicanálise não é e, junto com vocês, buscar o meio de recolocar em vigor aquilo que não cessou de sustentá-la em seu próprio desvio, ou seja, o sentido primeiro que Freud preservava nela por sua simples presença, e que se trata aqui de explicitar.[15]
Lacan caracteriza seu programa de investigação como uma retomada “do projeto freudiano pelo avesso”[16]. Ele comenta que os principais enunciados do texto freudiano precisariam ser virados ao avesso, tal como fazemos com uma luva. No final da década de setenta, Lacan diz o seguinte: “se falei de ‘retorno a Freud’ é para nos convencer de como manqueja [boiteux]”[17]. A estratégia de virar ao avesso o texto freudiano tinha como objetivo demonstrar suas contradições e sugerir soluções alternativas.
Lacan possuía clareza de suas mudanças teóricas na psicanálise, mas avaliava que ainda pertencia ao campo aberto por Freud. “O inconsciente não é de Freud, é preciso que lhes diga, ele é de Lacan. Isso não impede que o campo seja freudiano”[18]. O status do inconsciente foi alterado radicalmente quando isolado através do registro simbólico e do conceito de significante. Isso significa que o modo como o conceito de inconsciente era compreendido desde o fundador da psicanálise teve que ser criticado e revisto sob outra perspectiva teórica.
O famoso programa lacaniano de retomada ao texto freudiano se inscreve duplamente sobre o viés epistemológico e político. Ele busca extrair o que houve de revolucionário no trabalho de Freud e colocá-lo em constante tensão com outras disciplinas, sobretudo com a linguística de Jakobson e a antropologia de Lévi-Strauss. Por outro lado, ele é também endereçado ao campo analítico. O psicanalista francês sempre buscou fundamentar que sua interpretação do texto freudiano era possível porque estava lendo à letra, como se tentasse demonstrar ser mais fiel ao fundador da psicanálise do que os psicanalistas que rechaçaram o seu ensino. Fora do âmbito epistemológico e político, torna-se precário ajuizar sobre o alcance que o psicanalista francês buscava imprimir em seu programa da leitura de Freud.
Lacan e seu fracasso
Lacan afirmava que fracassou no seu ensino em meio ao sucesso surpreendente de venda dos Escritos em 1967. Ele avalia que os psicanalistas que diziam segui-lo descartavam o que havia de mais fundamental e preservavam somente as partes caducas de seu ensino. O condensado do trabalho intelectual dos últimos anos, organizado e publicado na obra chamada de Escritos, foi jogado na lata de lixo pelo público que buscava atingir[19].
Lacan considerava que os mistérios em torno da prática analítica continuavam crescendo, ao passo que seus discípulos não buscavam solucioná-los. Ele diz observar “até mesmo em alguns que julguei decididos a me seguir, uma resistência bastante estranha”[20]. Com isso, talvez estivesse indicando que a maior resistência não parte dos pacientes no tratamento, mas dos próprios psicanalistas em relação à elaboração teórica exigida por sua prática.
Nesse momento, Lacan já não fala dos pós-freudianos, mas dos psicanalistas que optaram em seguir o seu ensino durante mais de dez anos. “O inconsciente, pronto, é admitido, e, afinal, muitas outras coisas parecem admitidas, embrulhadas confusamente, mediante as quais todos crêem saber o que é uma psicanálise, exceto os psicanalistas, e isso é muito chato. Eles são os únicos a não sabê-lo”[21]. A falta de clareza sobre o que fundamenta o trabalho analítico era justificada pelos psicanalistas através do argumento que era necessário passar por uma experiência pessoal para compreendê-lo. Essa atmosfera envolta de mistérios não possui nenhuma semelhança com o espírito científico prometido por Lacan à EFP.
Lacan pergunta ao auditório presente em seu seminário de 2 de dezembro de 1971 se o modo como era incompreendido pelos psicanalistas poderia ser considerado como um sintoma. Depois de lançar essa questão, ele pergunta: “é um sintoma o modo da psicanálise ser incompreendida?” e “é um sintoma o modo da matemática ser incompreendida pelos jovens?”. A dificuldade dos psicanalistas em assimilar o seu ensino precisaria ser analisada em conjunto com os problemas de aprendizado da matemática entre os jovens.
A convergência entre o campo da matemática e o campo da psicanálise ocorre porque ambos operam com objetos que são construídos pelo próprio discurso. Eles trabalham com objetos que existem, embora não sejam objetos empíricos. As consequências que podem ser verificadas na clínica psicanalítica são produzidas somente pela articulação entre significantes condicionados por leis simbólicas. Lacan considera que uma das razões da psicanálise não ser compreendida é causada por sua necessidade de articular logicamente elementos sem o referencial empírico[22].
Lacan acreditava que era necessário produzir uma verdadeira reforma intelectual nos analistas para que conseguissem assimilar os rumos teóricos que buscava imprimir na psicanálise, mas confessa ter fracasso em sua tarefa. Esse fracasso pode causar menos surpresa se lembrarmos da lição de Koyré que toda reforma intelectual é sustentada por uma reforma espiritual profunda, capaz de instituir outro quadro axiomático para o pensamento.
A análise da revolução (e das revoluções) das ideias cientificas – única história que (junto com a da técnica) confere sentido ao conceito de progresso, tão exaltado como maltratado – nos coloca de forma imediata nas disputas travadas pela mente humana com a realidade; nos revela suas derrotas, suas vitórias; mostra que esforço sobre-humano lhe custou cada passo no caminho da compreensão do real, esforço que conduziu, por vezes, a uma verdadeira “mutação” no intelecto humano: transformação graça à qual algumas noções laboriosamente “inventadas” pelos maiores gênios tornaram-se não só acessíveis, mas também fáceis e evidentes para os estudantes.[23]
E mais adiante:
Já dissemos que essa atitude intelectual parece ter sido o resultado de uma mutação decisiva: é o que explica porque o descobrimento de coisas que hoje nos parece infantis custaram longos esforços – nem sempre coroados pelo êxito – dos maiores gênios da humanidade, um Galileu, um Descartes. O que se tratava não era combater umas teorias errôneas, ou insuficientes, mas de transformar a estrutura da própria inteligência; de transformar uma atitude intelectual, no fim das contas, muito natural, substituindo-a por outra, que não o era em absoluto.[24]
A revolução científica do século XVII não ocorreu por causa do desenvolvimento cognitivo da espécie humana, mas em virtude do surgimento de outro quadro axiomático para o pensamento. Ela também não ocorreu graças ao trabalho de um único gênio isolado, mas envolveu várias gerações de pesquisadores. Hoje não conseguimos observar nenhuma abóboda celeste, não acreditamos que os objetos caem porque querem retornar ao seu lugar natural e não causa mais espanto submeter o real ao matemático. Os conceitos que eram impossíveis de serem assimilados pelos grandes nomes do passado atualmente são ensinados aos estudantes no colégio. Só é impossível o que ainda não se tornou pensável. Contudo, essa reforma intelectual dependeu de uma reforma espiritual, responsável por introduzir uma concepção renovada de metafísica e de ontologia. A revolução científica foi sustentada por uma mudança na base religiosa e filosófica do pensamento ocidental.
É provável que o projeto de reforma intelectual almejado por Lacan exigisse mais do que uma única geração de psicanalistas para ser assimilado. Isso ocorre porque não estamos lidando apenas com novos conceitos científicos, mas com outra maneira de abordar o Ser e o real. Em todo caso, após quarenta anos de seu falecimento, estamos observando surgir outro momento no lacanismo em obras como Desler Lacan e Otro Lacan. Hoje ainda não, mas talvez em breve possamos dizer: “Esse Lacan, que banalidade!”.
Hudson Andrade, Porto Alegre, 26 de maio de 2022.
[1] Lacan, J. A psicanálise. Razão de um fracasso. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 346.
[2] Freud, S. A questão da análise leiga: diálogo com um interlocutor imparcial. Em: Obras completas. (vol. 17). São Paulo: Companhia das letras, 2014.
[3] Lacan, J. A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanálise. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, pp. 436-7.
[4] Lacan, J. Variantes do tratamento-padrão. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 363.
[5] Lacan, J. O seminário XI: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. (2ª ed.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008.
[6] Lacan, J. O engano do sujeito suposto saber. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 238.
[7] Lacan. J. Talvez em Vincennes. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
[8] Jakobson esteve presente na lição de 19 de dezembro de 1972. Nesse momento, Lacan diz que a resposta oferecida pela psicanálise à linguista seria o que chamou de linguisteria (combinação das palavras linguística e histeria). “Mas se consideramos tudo que, pela definição da linguagem, se segue quanto a fundação do sujeito, tão renovada, tão subvertida por Freud, que é lá que se garante tudo que de sua boca se afirmou como o inconsciente, então será preciso, para deixar a Jakobson seu domínio reservado, forjar alguma outra palavra. Chamarei a isto de linguisteria”. Lacan, J. O seminário XX: mais, ainda. (2ª ed.) Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985, p. 25.
[9] Lacan, J. Conferência no Instituto Tecnológico de Massachusetts. Em: Lacan in North Armorica. Porto Alegre: Fi, 2016, p. 85.
[10] Ibidem.
[11] Lacan, J. Carta de dissolução. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 319.
[12] Lacan, J. A psicanálise e seu ensino. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 442.
[13] Ibidem, p. 459.
[14] Lacan, J. Situação da psicanálise em 1956. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 490.
[15] Lacan, J. A coisa freudiana ou sentido do retorno a Freud em psicanálise. Em: Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 404.
[16] Lacan, J. Le séminaire XVII: l’envers de la psychanalyse. Disponível em: http://staferla.free.fr/, p. 3.
[17] Lacan, J. Ouverture de la section clinique du 1 janvier1977. Sem publicação. Disponível em: www.ecole-lacanienne.net, p. 1876.
[18] Ibidem, p. 1877.
[19] Lacan usa o neologismo poubellication. Ele é traduzido para o português como publixação, é composto pela combinação das palavras publication (publicação) e poubelle (lixo).
[20] Lacan, J. A psicanálise. Razão de um fracasso. Em: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, pp. 346-7.
[21] Lacan, J. Lugar, origem e fim do meu ensino. Em: Meu ensino. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 16.
[22] A respeito da incompreensão das matemáticas e consequentemente da psicanálise, Jean-Pierre Cléro comenta: “Aqueles que não compreende as matemáticas são os que não podem sustentar a verdade como uma simples função de construção, que não podem admitir que a construção é mais profunda que o verdadeiro, que apenas consideram a construção como estando à serviço da verdade”. CLÉRO, Jean-pierre. L’utilité des mathématiques en psychanalyse: un problème de chrestomathie psychanalytique, p. 26. Disponível em: https://www.cairn.info/revue-essaim-2010-1-page-7.htm.
[23] Koyré, A. Estudios galileanos. Madri: Siglo XXI, 1980, p.1.
[24] Ibidem, p. 5.