Psicanálise e decifração: Freud, Champollion e além

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Pode-se afirmar com vigor que o engenho humano não consegue engendrar uma cifra que o engenho humano não possa resolver.

Edgar Allan Poe

No ano de 1914, Freud escreveu um pequeno artigo anônimo com o objetivo de fornecer uma interpretação da estátua do profeta Moisés que foi esculpida por Michelangelo. Na parte mais extensa do artigo, Freud faz uma revisão bibliográfica e oferece um quadro de relativo consenso entre os especialistas que se dedicaram à obra; cujo veredito propõe tomá-la como uma representação do episódio bíblico que descreve o profeta colérico após ver o povo judeu adorando outros deuses. Freud realiza uma análise formal e técnica que disseca dois pequenos detalhes, que, segundo ele, foram negligenciados pela maioria dos comentadores por estarem mais interessados no aspecto geral da escultura. Em particular, sua atenção se volta a posição levemente levantada do pé esquerdo e ao dedo indicador da mãe direita.

Imagem da escultura do profeta Moisés esculpida por Michelangelo.

Resumidamente, Freud supõe que o pé esquerdo com os dedos plantados no chão serve como sustentação para o movimento de recuo depois que o corpo realizou um abrupto movimento inicial para se erguer. Por sua vez, o dedo indicador da mão direita sugere ter se enrolado e depois mergulhado nas mechas da barba conforme o restante do corpo recuava, enquanto o braço direito faz uso das tábuas das leis como ponto de apoio. Freud propõe que os dois detalhes quase insignificantes indicariam que o Moisés retratado foi uma recriação nascida das mãos de Michelangelo, que preferiu esculpi-lo como uma espécie de herói que não sucumbiu ao primeiro momento de fúria em prol da missão maior junto ao seu povo. Essa intepretação se afasta da versão retratada pelos especialistas que diziam ser uma representação fidedigna da narrativa bíblica.

Freud menciona que o tipo de técnica baseada nos resíduos e nos dados marginais que passam batido pela maioria das pessoas, porque estão mais interessadas no aspecto global do fenômeno observado, foi criado pelo russo Ivan Lermolieff – pseudônimo do médico italiano Giovanni Morelli. A técnica de Morelli foi desenvolvida para possibilitar que fosse distinguido o quadro original de suas réplicas falsas, pois seu criador compreendia que geralmente os plagiários se concentram nas características mais evidentes e não se preocupam com os traços mais sutis da obra. Freud sem hesitar destaca:

Acredito que seu procedimento está muito próximo da técnica da Psicanálise praticada por médicos. Também a Psicanálise está acostumada a partir de traços subestimados ou não observados, do refugo – o refuse – para intuir o misterioso e o escondido.[1]

O historiador Carlos Ginzburg[2] lança mão do elo feito pelo próprio Freud com Morelli para introduzi-lo na corrente de pensamento que emergiu no século XIX e cuja técnica era pautada nos detalhes anódinos dos objetos analisados. O historiador chama de paradigma indiciário o método que atravessou os trabalhos realizados por Morelli e seu destaque aos minuciosos signos pictóricos que tornavam possível distinguir o quadro autêntico da cópia; por Freud e sua importância aos detalhes desprezados nos sonhos, lapsos de linguagem, sintomas e chistes que reconstruíam os pensamentos inconfessos do neurótico; e por Sherlock Holmes e seu interesse pelos pequenos indícios deixados pelo criminoso na busca de desvendar o mistério da cena de um crime. O modelo epistemológico de decifração por intermédio das sutis pistas deixadas agruparia o perito em obra de arte, o psicanalista e o detetive de romance policial em um único campo.

Ginzburg acrescenta que o método usado por Morelli, Freud e Holmes em reconhecer os traços desprezados e transpor do conhecido ao desconhecido também contaria com o faro adivinhatório do investigador. Essa espécie de intuição particular e intransferível permitiria ao investigador distinguir com um golpe de vista o conteúdo relevante do trivial, o significativo do insignificante, o importante do assessório. Não discordamos de Ginzburg e reconhecemos na intuição uma peça indispensável em toda e qualquer investigação, o que não poderia ser diferente na investigação conjunta chamada de psicanálise. Porém, o autor parece não levar em consideração que somente saltamos no abismo da intuição e passamos do que sabíamos antes ao que saberíamos depois, após uma prolongada meditação sobre o encadeamento de uma longa série de pensamentos. Não há intuição ou aposta que não tenha sido antes mais ou menos enquadrada metodicamente pelo raciocínio.

Para sustentar semelhante hipótese, mereceria fazer o resgate da noção de decifração que foi evocada por Ginzburg e observá-la por um viés ligeiramente distinto do escolhido pelo autor. Lacan comenta que caso quiséssemos comparar Freud com qualquer outra figura, certamente não poderia ser com Cristovão Colombo por ter descoberto o continente desconhecido das forças irracionais que se agitam no inteiro do ser humano[3]. Ele sugere que uma comparação mais adequada seria com Jean-François Champollion.

Convém dizer que só se aceita isso com dificuldade, e que o vício mental denunciado acima goza de tamanho prestígio, que podemos esperar que o psicanalista de hoje admita que decodifica, em vez de se decidir a fazer com Freud as paradas necessárias (dê a volta na estátua de Champollion, diz o guia) para compreender que ele decifra: o que se distingue de decodificar pelo fato de que um criptograma só tem todas as suas dimensões quando é o de uma língua perdida[4].

A princípio é necessário distinguir decodificação e decifração. Há um código secreto bastante antigo que era usado pelos romanos chamado de cifra de César, no qual consiste na simples substituição de uma letra por outra graças ao descolamento na posição do alfabeto. Suponhamos que o deslocamento usado seja de três letras ou simplesmente “n + 3”, neste caso A se torna D, B se torna E, C se torna F, …, e X se torna novamente A. Como o alfabeto moderno possui 26 letras, o mesmo número pode ser convertido em deslocamentos e, assim, codificar qualquer pequena mensagem em milhões de combinações possíveis.

Trata-se de um processo de decodificação quando o receptor possui a chave da mensagem cifrada. Decodificar uma mensagem cuja chave conhecemos é uma tarefa mecânica, tão mecanicista quanto o hábito presente nos psicanalistas em tentar decodificar toda sorte de mensagem que recebem usando chaves como complexo de édipo, pulsão de morte, satisfação inconsciente ou teses sociológicas. Por outro lado, somos confrontados com um problema totalmente diferente quando não dispomos da chave usada na mensagem cifrada, tal problema ocorre quando tratamos de línguas que foram extintas ou comunicações secretas que forma interceptadas pelos serviços de inteligência. Neste caso, trata-se de um problema de decifração.

Je tiens l’affaire!

Os hieróglifos (também conhecidos como escritura sagrada) eram uma forma de escrita praticada no Egito antigo e sua utilização mais remota data do ano 3000 a.c[5]. Por causa da complexidade envolvida na escrita hieroglífica, outras formas de escrita mais simples e fluídas foram desenvolvidas no decorrer dos séculos, como o hierático (escrita dos sacerdotes) e o demótico (escrita do povo). Porém, com o processo de expansão da religião cristã, as escritas da cultura pagã egípcia foram diluídas no grego antigo e substituídas por outra chamada de copta. Dessa forma, por volta do século IV d.c., o conhecimento das três escritas egípcias já estava simplesmente extinguido.

No século XVII, o papa Sisto V iniciou o projeto de reurbanização da cidade de Roma e colocou obeliscos comprados do Egito nas novas avenidas construídas. Neste momento, os hieróglifos ressurgem no ocidente como enigmas colocados por povos distantes no passado para serem decifrados. A tarefa de decifração dos hieróglifos ficou praticamente estagnada por um longo período em razão da compreensão de que eram simples ideogramas, ou seja, pensamentos inteiros que eram representados na forma de imagens.

Em 1799, os soldados do exército napoleônico que estavam posicionados na cidade de Roseta, localizada no delta do rio Nilo, acharam uma enorme rocha em cuja superfície estava escrito o mesmo texto em hieróglifo, demótico e grego antigo. O texto escrito em grego na pedra Roseta, como foi batizada, possibilitou que fosse aberto um canal de comunicação à língua hieroglífica. Graças ao grego foi possível reconhecer que o texto foi escrito em 196 a.c. e era um decreto estabelecido pelo conselho dos sacerdotes para promover o culto ao faraó Ptolomeu. Contudo, o estado de conservação do artefato estava bastante deteriorado e impedia que o trabalho de tradução fosse concluído.

Imagem da Pedra Roseta

O mistério criado em torno da escritura presente na pedra Roseta se tornou um objeto de fascínio ao erudito de nacionalidade britânica Thomas Young. No primeiro momento, seu trabalho se fixou em um grupo de hieróglifos que aparecia repetido seis vezes ao longo do texto e estava destacado com um círculo, o que lhe fez supor que se tratava de algo importante. A hipótese levantada era que se tratava do nome do faraó egípcio. Essa hipótese também possibilitou que fosse estabelecido o valor fonético de cada hieróglifo, visto que os nomes próprios são pronunciados quase da mesma maneira independentemente da língua. Contudo, o trabalho de Young foi subitamente interrompido, talvez porque sua hipótese de que os hieróglifos eram unidades fonéticas contrariava que fossem ideogramas, como era defendido por seu mestre Athanasius Kircher.

A charada inscrita na superfície da pedra Roseta permanecia não solucionado e despertou uma curiosidade ardente no linguista francês Champollion. Ele retomou o trabalho iniciado por Young, que tinha acabado de ser publicado, e aplicou em novos conjuntos de hieróglifos o mesmo princípio de pensá-los em termos fonéticos. Além disso, Champollion também conseguiu observar que várias vezes os escribas utilizavam uma palavra que era decomposta em partes menores, por exemplo, o desenho de um “sol” unido ao de um “dado” compõe uma palavra que se lê “soldado”. Essa técnica bastante presente em jogos infantis se chama rébus. Ele desvendou o enigma da pedra Roseta após propor que os hieróglifos podem ser fonogramas e possuir valor fonético, como também ideogramas e representar objetos e conceitos abstratos com imagens ou ainda determinativos e servir na diminuição da ambiguidade de mensagens.

Imagem da decifração de Champollion das palavras em hieróglifos

No período em que Young e Champollion trabalhavam na decifração da pedra Roseta, Edgar Allan Poe recheava seus textos com enigmas e charadas (como em Os assassinatos da Rua Morgue, O mistério de Marie Roget e A carta roubada). No conto O escaravelho de ouro, Poe recria uma pequena ilha na Carolina do Sul e coloca três personagens para solucionar um quebra-cabeça que os levariam para um baú repleto com tesouros que foi escondido por antigos piratas. A solução do problema depende da decifração de um criptograma deixado pelo capitão Kidd aos seus marujos.

Imagem do criptograma presente no conto O escaravelho de ouro, escrito por Edgar Allan Poe.

O primeiro obstáculo colocado pelo criptograma consiste em qual língua se originou. A hipótese inicial diz que poderia ser o espanhol já que o barco dos piratas viajava por águas espanholas, mas outra hipótese surge no espírito de um personagem e sugere que poderia ser o inglês porque o nome Kidd não possui sentido em outra língua. Inspirado na tabela de frequência de letras no idioma inglês, criada naquele período por Samuel Morse, Poe faz com que os personagens sejam guiados por este método na decifração do criptograma[6].

A frequência das letras presente na construção das orações em inglês segue essa ordem: E – 12,7%, T – 9%, A – 8%, O – 7,5%, I – 6,9%, N – 6,7%, S – 6,3%, H – 6%, etc[7]. Como o “8” é o sinal que aparece mais vezes no criptograma (33 ocorrências), os personagens começam conjeturando que poderia ser o substituto da letra E no alfabeto natural. O palpite parece indicar um bom começo já que geralmente o E surge duplicado nas palavras em inglês (meet, fleet, speed, seen, been, agree, etc.) e também aparecem cinco sinais “8” duplicados no criptograma. Como no inglês o artigo the é o mais usado, também é possível buscar no criptograma se existem três sinais iguais que se repetem. Isto é confirmado com sete arranjos formados pela combinação “;48”. Neste caso, “;” representaria o T, “4” o H e “8” o E. Depois de localizar o artigo inglês, pode-se identificar onde começam e terminam algumas palavras. A análise dos personagens do conto se detém no trecho de sinais que surge logo após o último arranjo “;48” (destacado em vermelho), do qual são conhecidos cinco dos seis sinais. Assim, somos levados a seguinte conjetura:

Imagem da decifração de um trecho do criptograma presente no conto O escaravelho de ouro, escrito por Edgar Allan Poe.

Os personagens concordam que não haveria no idioma inglês nenhuma palavra que preenchesse o espaço da incógnita e que terminasse com th. Isto sugere que são duas palavras distintas. O sinal “(”presente no arranjo “t?ee” é substituído pelo letra R, por causa da recorrência da sílaba tr no inglês. Com isto, teríamos: the tree (a árvore). Depois de substituir os sinais pelas letras que foram descobertas, obtemos: the tree thr???h the. A palavra mais plausível que parece se encaixar no lugar das incógnitas é through, assim, descobrimos também que o sinal “‡” representa o O, o “?” o U e o “3” o G.

Depois de ter descoberto sete letras é possível partir para outros trechos do criptograma cujas mesmas letras são encontras. No começo encontramos o trecho “†83(88” (destacado em azul), no qual, após ser aplicado o que sabemos, nos oferece: ?egree. O trecho sugere que seria uma substituição da palavra degree; com isto, agora sabemos que “†” representa o D. Pouco mais adiante encontramos “;46(;88*” (destacado em verde), no qual podemos encontrar: th?rtee?. Isto rapidamente nos leva à palavra thirtten (treze), o que nos oferece novamente duas novas letras, com “6” representando o I e o “*” representando o N. No começo do criptograma encontramos “53‡‡†” (destacado em amarelo) e sabemos que podemos lê-lo como: ?good. A única configuração que parece possível para o arranjo no inglês seria A good (um bom), assim obtém-se que o “5” representa o A.

Depois de conhecer o método de deciframento usado no conto, o texto original pode ser descoberto sem grandes dificuldades:

A good glass in the bishop’s hostel in the devil’s seat twenty-one degrees and thirteen minutes northeast and by north main branch seventh limb east side shoot from the left eye of the death’s-head a bee-line from the tree through the shot fifty feet out.

Em português teríamos:

Um bom vidro na hospedaria do bispo no assento do diabo vinte e um graus e treze minutos nordeste quarta a norte galho principal sétimo ramo lado leste atirar do olho esquerdo da caveira uma linha de abelha a partir da árvore diretamente do tiro cinquenta pés distantes.

O mistério presente nos enigmas constitui o objeto central em torno do qual gravita toda temática dos romances policiais escritos por Arthur Conan Doyle e seu personagem especialista em desvendar charadas, o detetive Sherlock Holmes. Em A aventura dos homenzinhos dançantes, Holmes e Watson são procurados por Hilton Cubitt porque estava preocupado com o estado de saúde de Elsie Patrick, sua esposa, após ter recebido uma carta dos EUA. Há um ano, Elsie havia chegado na Inglaterra vinda dos EUA e logo se casou com Cubitt, mas exigia do marido que nunca perguntasse sobre o seu passado. A promessa impedia que Cubitt perguntasse sobre o conteúdo da carta e o que motivava o estado de saúde da esposa. No mesmo período, estranhas figuras de homenzinhos dançantes apareceram por todos os lados na residência do casal. Pouco tempo depois, Cubitt foi morto por tiros e Elsie internada no hospital após ser gravemente ferida, assim, Holmes não possuía outro recurso para desvendar o mistério além dos criptogramas encontrados.

Imagem do criptograma presente no conto A aventura dos homenzinhos dançantes, escrito por Arthur Conan Doyle.

Como os personagens do conto de Edgar Allan Poe, Holmes baseia-se na frequência estatística presente no inglês e seleciona os sinais mais frequentes na mensagem. Dessa forma, como quatro dos quinze sinais que aparecem na primeira mensagem são semelhantes, o detetive supõe que seriam o representante da letra E no alfabeto e ainda acrescenta que os homenzinhos segurando bandeiras poderiam servir como espaçamento entre cada palavra. A partir disto, o trabalho de decifração se complica porque as letras T, A, O, I, N, S e H surgem com frequência quase idêntica no inglês e fazer uma análise combinatória com todas demandaria muito tempo e esforço. A quarta mensagem é mais curta, com cinco sinais, e sugere formar uma única palavra, na qual podemos observar: ?e?e?. As palavras que poderiam se encaixar seriam sever (separar), lever (alavanca) ou never (nunca). Holmes sugere ser never porque acredita que se trataria de um apelo dirigido para alguém. Dessa forma, conhecemos os sinais que representariam outras três letras: N, V e R.

Movido pela hipótese de que o criptograma se tratava de um apelo dirigido para uma pessoa, Holmes imagina que fosse para Elsie e busca trechos na mensagem que possuíssem dois E contendo três sinais intermediários. Isto pode ser encontrado na terceira e na quinta mensagem; assim descobriríamos mais três letras novas: L, S e I. Na terceira mensagem, há apenas quatro sinais que antecedem o nome Elsie, podendo sugerir que se trataria da palavra come (venha). De posse das letras C, O e M é possível abordar trechos mais extensos do criptograma. Dessa forma, na primeira mensagem encontramos: ?m ?ere ??e sl?ne. Holmes sugere que o primeiro e o segundo sinais são, respectivamente, o A e o H e os demais espaços ocupados por incógnitas seriam letras de um nome próprio: am here Abe Slane (estou aqui Abe Slaney).

Por sua vez, na segunda mensagem temos: a?elri?es?. Holmes supõe que o trecho do criptograma se trata de um lugar de encontro, uma casa ou um hotel, que apenas poderia ser decifrado colocando o T e o G. Isto forneceria: Atelriges. E por último, após aplicar o conjunto de letras conhecidas na quinta mensagem, obteríamos: elsie ?re?are to meet thy go?. A mensagem pode ser facilmente elucidada introduzindo nas lacunas restantes o P e o D, o que forneceria: Elsie prepare to meet thy god (Elsie prepara-te para encontra teu Deus).

Holmes decifra o enigma contido no criptograma dos dançarinos concluindo que se tratava de uma série de mensagens cifradas que tinham sido enviadas por um antigo namorado de Elsie, o criminoso Abe Slaney. O casal fazia parte da mesma quadrilha nos EUA e o relacionamento acabou depois que Elsie decidiu mudar de vida e viajar à Inglaterra. Slaney não conseguiu superar o término e enquanto circulava nos arredores da casa de Elsie, foi avistado e terminou baleando Cubitt. Por fim, Elsie tentou se suicidar atirando contra si mesma.

Menos de cem anos após os trabalhos de Champollion foi publicado o livro A interpretação dos sonhos, em 1899, escrito por um médico neurologista e considerado por muitos como o texto fundador da psicanálise. A tese central do livro consiste na afirmação de que os sonhos são formações disfarçadas e representam o caminho privilegiado para acessar os nossos desejos mais íntimos e ao mesmo tempo mais estrangeiros. A importância do sonho não se encontra no significado de suas imagens estranhas e incoerentes, mas que cada parte sua compõe um enigma cujo conjunto precisa ser decifrado como um rébus[8].

A transmissão de informação via ondas de rádio permitia que mensagens fossem enviadas com grande velocidade e superassem enormes distâncias, mas trazia consigo o inconveniente de serem facilmente interceptadas. Neste contexto, o método de cifrar mensagens, que nasceu como forma de demonstrar o domínio que os escribas possuíam em seu ofício, se transformou em uma necessidade para manter preservado o sigilo das correspondências enviadas em períodos de guerra.

No final da Primeira Guerra Mundial, o engenheiro elétrico alemão Arthur Scherbius acreditava que o método de cifrar mensagens usando lápis e papel estava obsoleto e projetou uma máquina codificadora batizada com o sugestivo nome de Enigma. Os primeiros modelos da máquina funcionavam de maneira bastante simples, embora muito eficaz, com três rotores encadeados contendo 26 letras cada um. A letra da mensagem original era digitada no teclado, passava pelo conjunto de rotores e saia como outra letra; assim, qualquer letra do alfabeto poderia ser transformada de 26 formas possíveis com um rotor, 676 com dois rotores, 17.576 com três rotores, 456.976 com quatro rotores e 11.881.376 com cinco rotores, como posteriormente foi usado pela marinha alemã. A posição de cada rotor funcionava como chave que deveria ser introduzida na máquina do destinatário da mensagem no momento de decodificação. Dessa forma, qualquer mensagem que fosse interceptada pelo serviço de inteligência inimigo seria como uma sopa de letrinhas agrupadas de maneira aleatória[9].

Ainda no contexto do fim da Primeira Guerra Mundial, os poloneses precisaram fortalecer o seu gabinete secreto de cifras porque se encontravam ameaçados pela Alemanha, no lado oeste, e pela União Soviética, no lado leste. Com o emprego da Enigma no processo de codificação de mensagens, o time polaco de criptoanalistas que era formado por eruditos e linguistas foi gradativamente substituído por matemáticos como Marian Rejewski[10].

Os criptoanalistas poloneses trabalhavam como um detetive que reúne um grande banco de dados e constrói hipóteses com o objetivo de solucionar o mistério. Como não dispunham do livro de códigos da máquina e as chaves eram modificadas todos os dias pelos alemães, Rejewski e sua equipe se concentravam em descobrir o padrão de encadeamento entre cada rotor da Enigma. Depois de um ano de atividade interrupta, o serviço de inteligência conseguia descobrir a chave usada para codificar as mensagens alemãs em pouco mais de 24h. Em dezembro de 1938, os alemães acrescentam mais rotores na máquina e o trabalho árduo e lento de decifração se tornou inviável por causa da pressa exigida pela iminência de outra guerra. Nesta situação, os poloneses não encontram outra solução que não fosse criar uma super máquina chamada de Bombe, composta por dezenas de Enigmas acopladas, para facilitar e acelerar o processo de decifração das mensagens interceptadas. Porém, na madrugada de 1° de setembro de 1939, um navio alemão atacou um depósito militar polonês e ocorreu o início da Segunda Guerra Mundial.

Pouco antes do ataque sofrido, os poloneses enviaram ao serviço de inteligência secreto inglês os passos do método empregado para decifração do código alemão e o princípio de funcionamento da máquina Bombe. Na instalação militar de Bletchley Park, o gabinete de cifras britânico recrutou um grupo excêntrico composto por matemáticos, enxadristas e solucionadores de palavras cruzadas com o objetivo de quebrar o código alemão e sair vitorioso da guerra. Nesse ambiente trabalhou o mentor intelectual dos computadores modernos Alan Turing. No decorrer dos anos os ingleses fizeram sucessivas melhorias na Bombe e construíram máquinas que conseguiam acelerar o processo de descoberta das chaves, mas também precisaram contar com o engenho de seus criptoanalistas.

As máquinas de decodificação construídas pelos poloneses e britânicos conseguiam acelerar o processo bruto e fornecer o conjunto de chaves possíveis com base no encadeamento de cada rotor, mas o trabalho restante dependeu da astúcia dos criptoanalistas em detectar os erros de projeto na construção da Enigma e dos sucessivos equívocos cometidos pelo inimigo. Os ingleses sabiam que algumas transformações de letras eram impossíveis de serem realizadas pela máquina, por exemplo, caso A fosse cifrada como D, D só poderia ser cifrado como A. Além disto, os operadores alemães tinham o costume de repetir trechos de mensagens para reduzir sua ambiguidade, introduzir saudações (como o famoso heil Hitler) cujo padrão podia ser reconhecido na mensagem cifrada ou, ainda, usar chaves de configuração facilmente quebradas por engenharia reversa (como Q, W, E, R, T – o equivalente da senha 1, 2, 3, 4, 5 usada pelos usuários da internet). Esses pequenos deslizes reduziam o número de chaves que deveriam ser testadas, de modo que até o final da Segunda Guerra Mundial os aliados conseguiam decifrar uma mensagem inimiga em cerca de 20 minutos. Rejewski e Turing foram no século XX o equivalente do que Champollion foi no século XIX.

Conclusão

A análise fornecida pelo historiador Carlos Ginzburg poderia ter caraterizado melhor e de maneira mais abrangente o que chamou de paradigma indiciário, caso lhe tratasse como o surgimento de um novo campo científico cujos autores lidam com seus objetos na forma de puzzles que precisam ser solucionados. Como os entusiastas em jogos de palavras cruzadas, Champollion, Holmes, Freud e os criptoanalistas sabem que na linguagem existe componentes estatísticos responsáveis por tornar certos elementos mais recorrentes do que outros. Tais componentes aparecem na comunicação na forma de repetição e redundância, permitindo, assim, certa dose de previsibilidade acerca da mensagem recebida. Por sua vez, o comportamento probabilístico possibilita que seja inferido o conjunto de mensagens que são possíveis ou impossíveis de serem transmitidas. Em razão dessas características, embora não tenhamos o pleno conhecimento sobre o teor da mensagem original, também não caímos na total ignorância. A meditação sobre o encadeamento das palavras possibilita que o jogador de palavras cruzadas realize apostas e tome decisões acerca das letras possíveis de seres introduzidas nos hiatos e lacunas deixados pelo problema.

A decifração exigida pelos hieróglifos ou jogos de palavras cruzadas depende da união entre o raciocínio probabilístico e o ato de realizar apostas com base em um conjunto restrito de escolhas possíveis. Porém, ambos nunca são solucionados com apenas um único detalhe. O criptoanalista e o jogador só conseguem fazer uso dos pequenos indícios desde que compreendam o sistema de leis que rege seus respectivos objetos, embora eventualmente não seja de maneira precisa ou exaustiva, e conseguem utilizá-los como pistas ou desfechos na solução do enigma.

Quando tocamos na questão da decifração de uma língua morta e da resolução de um jogo de palavras cruzadas, lidamos simultaneamente com o problema da incerteza da informação, das probabilidades implicadas e das decisões possíveis que os agentes envolvidos podem tomar. No século XX, os exercícios recreativos aparentemente mais ingênuos presentes nos jogos submergiram à consciência científica e ocorreu o surgimento da Cibernética, Teoria da Informação, Teoria dos Jogos e outro capítulo na história da Psicanálise. Neste momento, ocorre o resgate do programa das ciências conjecturais inaugurado séculos antes por Bernoulli e Pascal, como também o renascimento da questão sobre como os agentes conseguem lidar em situações que envolvem incerteza e decisão.


[1] Freud, S. O Moisés, de Michelangelo. Em: Arte, Literatura e os Artistas. Belo Horizonte: Autêntica Editora, p. 197.

[2] Ginzburg, C. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. Em: Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo, Companhia das letras, 1989.

[3] Vale lembrar que o romantismo alemão não travava de outro assunto. Por nossa conta, acrescentamos também que Freud tampouco descentrou o ser humano de si mesmo com sua hipótese sobre o inconsciente, visto que já existia uma longa tradição que atravessou Nietzsche e Rousseau e em cujos trabalhos era destacado que existem pensamentos lá onde o “eu” não imagina pensar.

[4] Lacan, J. A instância da letra no inconsciente. Em: Escritos. Rio de Janeiro, Zahar, p. 514.

[5] SINGH, Simon, O livro dos códigos. Rio de Janeiro: Record, 2001.

[6] O código Morse é de 1834 e o conto The gold bug escrito por Poe é de 1842.

[7] Se o bando dos piratas fosse formado por falantes do português teríamos: A – 14,6%, E – 12,5%, O – 10,7%, S – 7,8%, R – 6,5%, I – 6%, N – 5%, D – 4,9%, etc.

[8] “Os pensamentos oníricos e o conteúdo onírico se mostram a nós como duas figurações do mesmo conteúdo em duas línguas diferentes, ou melhor, o conteúdo onírico se apresenta a nós como uma tradução dos pensamentos oníricos numa outra forma de expressão, cujos signos e leis sintáticas devemos chegar e conhecer pela comparação entre o original e a tradução. Os pensamentos oníricos são facilmente compreendidos tão logo tomemos conhecimento deles. O conteúdo onírico se apresenta numa espécie de pictograma, cujos signos cabe traduzir um a um na linguagem dos pensamentos oníricos. Cometeríamos um engano evidente se quiséssemos ler esses signos segundo seu valor imagético em vez de fazê-lo de acordo com sua relação sígnica. Vamos supor que eu tenha diante de mim um enigma figurado (rébus): uma casa sobre cujo teto se vê um barco, ao lado uma letra isolada e ao lado dela uma figura decapitada a correr, etc. Eu poderia criticar essa composição e seus elementos declarando que são absurdos. O texto de uma casa não é lugar para um barco e uma pessoa sem cabeça não pode correr; além disso, a pessoa é maior do que a casa, e se isso tudo deve figurar uma paisagem, letras isoladas não se encaixam, pois afinal elas não são encontradas na natureza. A avaliação correta do rébus evidentemente só ocorrerá se eu não levantar essas objeções contra o todo e suas partes, mas me esforçar em substituir cada imagem por uma sílaba ou uma palavra que, por meio de uma relação qualquer, possa ser figurada pela imagem. As palavras assim combinadas não carecem mais de sentido, mas podem resultar na mais bela e mais profunda das sentenças poéticas. O sonho é um enigma figurado desse tipo, e nossos precursores no campo da interpretação dos sonhos cometeram o erro de julgar o rébus como uma composição gráfica”. FREUD, S. A interpretação dos sonhos. Porto Alegre: L&PM, 2019, pp. 299-300.

[9] Para uma explicação mais detalhada sobre o funcionamento da Enigma, vale conferir em: https://www.youtube.com/watch?v=ybkkiGtJmkM.

[10] Cimino, A. A história da quebra dos códigos secretos: dos antigos códigos secretos à criptografia quântica. São Paulo: M.Books, 2018.

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